quarta-feira, 26 de outubro de 2011

(1) CONTROLE - Proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais nas politicas públicas

por Wanderlino Nogueira Neto
Texto elaborado pelo Autor como base para palestra proferida no Seminário Regional Nordeste 2011 da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e Juventude – ABMP, em setembro de 20011, na cidade de Salvador / Bahia.

A discussão sobre a proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais como forma  de controle das políticas públicas no Brasil necessita ser contextualizada dentro da discussão mais ampla sobre as múltiplas formas de controle público, de modo geral, sobre seus diversos embasamentos e suas conseqüências específicas.

Ainda não mereceram o necessário aprofundamento teórico, tanto o (1) controle institucional (interno e externo) sobre as políticas públicas, por parte de instâncias do Legislativo e do Executivo, quanto o (2) controle social por parte da população, através de suas organizações representativas. Por sua vez, o (3) controle judicial nas políticas públicas pelo sistema de Justiça, menos ainda tem sido objeto de suficiente tratamento doutrinário e jurisprudencial, talvez por ser preocupação recente na seara jurídica, a despeito da inquestionável importância para a proteção efetiva dos direitos fundamentais, pela via jurisdicional.

Justifica-se e opera-se o controle público, nessas três modalidades citadas esquematicamente acima, como formas de

(1) garantia da efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana (individuais indisponíveis, sociais, difusos e coletivos), via implementação de políticas públicas;
(2) garantia da legalidade, moralidade, economicidade, impessoalidade e publicidade dos atos administrativos.

No primeiro caso, precisamos tomar consciência, , se estaremos ou não efetivamente promovendo e protegendo a realização de direitos fundamentais, no quadro de um Estado Democrático de Direito. Sob esse primeiro aspecto, as políticas públicas são em verdade mecanismos válidos e importantíssimos de efetivação de direitos fundamentais: assim, efetivam-se direitos fundamentais pelas políticas públicas. Analisemos nesse momento o controle judicial dos atos administrativos pelo viés da promoção e proteção dos direitos fundamentais.

Esse emarcamento das ações das políticas públicas nos direitos humanos positivados, ainda não tem tradição suficientemente assentada no Brasil e por isso trabalhamos na seara do novo e na linha da construção de uma práxis realmente nova: reflexão-ação-reflexão-ação. Isso, pelo fato de que a discussão sobre direitos humanos e sua normatização jurídica, de maneira explicita, no Brasil, só nos vem tardiamente a partir do Programa Nacional de Direitos Humanos (I) em 1996, elaborado e proposto pelo Governo Federal e aprovado durante a I Conferência Nacional dos Direitos Humanos, no Congresso Nacional.

Só de último, começou-se a fazer um aprofundamento maior sobre as bases teóricas e as conseqüências práticas do controle judicial e do controle não-judicial das políticas de Estados. Nossa tradição nesse campo do controle judicial tinha como tônica mais forte a limitação da discricionariedade administrativa, para analisarmos sua adequação à lei.

Apesar da questão relativa a essas diversas formas de controle sobre as políticas públicas não ter merecido o devido destaque dos doutrinadores políticos e jurídicos clássicos - não se pode descurar que, talvez diante do impacto das situações fáticas que a sociedade impõe aos principais atores políticos e forenses e aos estudiosos da conjuntura e dos cenários sociais, já se percebe claramente uma crescente inquietação com o reconhecimento da necessidade de se tornar mais eficiente, eficaz e efetivo os controles, tanto político-gestionário, quanto jurisdicional no âmbito das políticas públicas.

De relação ao controle político-gestionário externo e interno, pelo Legislativo (e por seus Tribunais de Contas) e pelos órgãos especializados do próprio Executivo (controladorias, ouvidorias, corregedorias, conselhos etc.), a divulgação livre de informações sobre malversações de dinheiro público e formas diversas de corrupção, pelas mídias atualmente, tem exigido do Estado uma qualificação e um melhor aparelhamento dos seus mecanismos de acompanhamento, monitoramento, avaliação e correição das ações, em todas as políticas públicas.

A se destacar, nesse campo do controle institucional político-gestionário, o papel reservado aos conselhos de formulação de políticas e de controle misto (governamental e societário - paritariamente ou não) de ações públicas: os conselhos dos direitos da criança e do adolescente, os conselhos da assistência social – por exemplo.

Todavia, na prática, analisadas as informações e os dados dos diversos levantamentos e pesquisas realizados pelo governo e por entidades acadêmicas, constata-se que esses conselhos ainda não encontraram seu caminho para exercerem com resultados (eficiência) e impactos sociais (eficácia) seu papel de controladores das ações públicas governamentais e não governamentais, como suas leis de criação e regulação definem. São indiscutivelmente mais eficientes e eficazes como espaços de mobilização social e um pouco mais espaços de formulação de políticas. Não conseguem eles criar e desenvolver estratégias, táticas e metodologias de controle, na linha do acompanhamento, do monitoramento, da avaliação e da correição de relação às ações públicas. Muito ainda se precisa discutir sobre esse papel, como controlador de ações públicas, de tais conselhos e muito há ainda a se fazer, a se operacionalizar nesse campo, de raras boas práticas a serem registradas e analisadas para replicação.

Por sua vez, os conselhos tutelares não encontram nicho nas leis vigentes para exercerem algum papel como controladores das ações desenvolvidas pelas políticas públicas de modo geral em favor da infância e adolescência.

Não são eles órgãos de formulação, coordenação, execução e controle de políticas públicas. Seu papel está mais próximo do papel de órgãos do Sistema de Justiça, como incumbidos da defesa dos direitos de crianças e adolescentes quando ameaçados ou violados, exatamente como os coloca a Resolução nº 113 do Conanda. Compete a ele, como um verdadeiro colegiado contencioso administrativo (ou seja, “não-jurisdicional”), nos termos do Estatuto multicitado, “zelar pelos direitos”, aplicando medidas especiais de proteção, com requisição de serviços públicos, visando com isso restaurar os direitos ameaçados ou violados. Ou quando esgotados seus esforços sem atendimento pelo Executivo municipal, compete a ele representar ao Ministério Público, para dar conhecimento de lesões a direitos. Ou é de sua atribuição mais encaminhar seus dossiês e conclusões, ao Judiciário quando a matéria notoriamente extrapolar de suas atribuições e for da competência da Vara da Infância e da Juventude: uma espécie de “declinatória de competências”, por extensão.

De outro lado, a sociedade, com destaque para as multiformes expressões dos movimentos sociais (a dita “sociedade civil organizada”), apesar das perdas mais recentes da sua força como instância de controle social, procura ainda qualificar mais o exercício desse seu papel controlador, especializando-se em atuar em determinados campos bem específicos, como por exemplo, no Orçamento Público; como no caso do chamado “Orçamento-Criança” – OCA, pelo CONANDA e por alguns CEDCA.s e CMDCA.s, pelo país.

O chamado controle social é privativo das organizações sociais e nenhum outro espaço público estatal (por autônomo que seja em tese) pode se arvorar a ser mecanismo de controle social - como no caso, os conselhos dos direitos da criança e do adolescente ou os conselhos tutelares, mesmo integrados paritariamente por representantes de entidades da sociedade ou mesmo escolhidos pelas comunidades.

Controle judicial nas políticas públicas:proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais

No campo do controle jurisdicional dos atos administrativos e legislativos, optou-se aqui nesta intervenção por se partir do exame de alguns julgados mais recentes, como precedentes judiciais, para avançar na análise teórica sobre tal forma de controle estatal de políticas públicas

Não pretendemos ver, neste registro e nesta análise de precedentes judiciais, no Poder Judiciário e no controle judicial dos atos administrativos e legislativos, a salvação do mundo e a solução para a questão social. Ou, em oposição, neste registro e nesta análise procuraremos ver sim a necessidade de uma interpretação da ordem jurídica que seja mais comprometida com a busca da efetividade dos direitos fundamentais, que dependem do seu reconhecimento e garantia pelo Estado, através das políticas públicas

A predominância das teses jurídicas “neo-constitucionalistas” só mais recentemente encontrou guarida de forma mais dominante no Judiciário brasileiro, destacadamente no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, dando primazia clara às normas principiológicas constitucionais - especialmente nos casos de aplicação de normas de direitos fundamentais (enquanto direitos humanos positivados). Isso até com certo escândalo dos mais conservadores e mais positivistas, que negam esse papel político que a Constituição Federal garante às altas Cortes judiciais no Brasil, a partir de 1988, de dizer o direito na omissão do legislador, especialmente no campo dos princípios fundamentais constitucionais já consagrados que devem ser entendidos como auto-aplicáveis e não meramente programáticos. Por exemplo, no reconhecer direitos decorrentes das relações homo-eróticas a partir do princípio da igualdade formal e material consagrado pela Constituição. Ou no caso da autorização para manifestações públicas, sem apologia, do uso da maconha, com sua descriminalização, com base no princípio constitucional da livre expressão do pensamento.

Mas, que se entendem como políticas públicas, preliminarmente, quando se fala das diversas formas de controle público sobre elas, especialmente do controle judicial das políticas públicas?

O tema das “políticas públicas” ocupa hoje lugar central nos debates da contemporaneidade, quando posto sob a perspectiva do seu controle, pelas diversas vias, especialmente a judicial, como visto introdutoriamente acima.

Em relação a este assunto, muitas questões estão em aberto. Uma delas, absolutamente básica são o significado e o alcance da expressão “política pública”, raramente desenvolvida em doutrina jurídica. Outra, diz respeito à legitimidade constitucional do controle pelo Poder Judiciário, diante de princípios jurídicos de indiscutível importância histórica, como o da “separação de poderes”, que sempre assumiu papel de destaque na limitação do poder dos governantes. É muito difícil saber também em que medida as políticas públicas podem ser analisadas e monitoradas/avaliadas pelo Poder Judiciário.

Cresce, na discussão sobre políticas públicas e sobre o seu controle judicial - a importância de idéias como a da preservação do “mínimo existencial”, por exemplo. A partir desse conceito político e jurídico, será que, ao menos, as políticas ligadas às condições básicas para uma vida digna (esse chamado “mínimo existencial”) não devem ser controladas em juízo? Podem ser minimizadas diante da escassez de recursos públicos? Há que se observar sempre a “cláusula da reserva do possível”, importada do direito alemão? Em todas as situações? Exclusivamente, respeitado “o possível”?

Nos mesmos termos deve-se discutir, na discussão sobre ações, programas e serviços de políticas públicas em favor da infância e adolescência, quando se invocar o princípio constitucional fundamental que garante a prevalência do “superior interesse da criança e do adolescente” amplamente na implementação das políticas públicas e quando se invocar mais estritamente o princípio que garante a “prioridade absoluta no atendimento a crianças e adolescentes”.

É possível a tutela judicial das políticas públicas? Em que medida? Em caso positivo, diante da atividade promocional do Estado, poderia o juiz determinar comportamentos específicos à Administração, na preocupação de suprir omissões inconstitucionais ou ilegais? Ou deve limitar-se ao estabelecimento de ordens genéricas, interferindo minimamente nas decisões ditas políticas? Fica aqui uma pauta para discussão.

Precedentes judiciais emblemáticos a respeito do controle sobre políticas públicas, particularmente sobre a política de coordenação e planejamento público

Registra-se- de último, no âmbito do Judiciário, a ocorrência de alguns julgados que considero emblemáticos e sinais de novas tendências jurisprudenciais e que sustentam a possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas; delineando melhor os contornos da atividade judicial neste campo, na tentativa de se reconhecer e garantir direitos fundamentais dos cidadãos.

Emblematicamente, os tribunais superiores da República aos poucos vêm consagrando entendimentos mais apropriados a essa proteção judicial para se alcançar a efetivação de direitos fundamentais, inclusive os que dependem das políticas públicas. Entendimentos novos que estão levando à superação da velha perspectiva de que o Poder Judiciário sequer examinava demandas que envolveriam a realização, por qualquer outro modo, de políticas públicas - por excessivo respeito à discricionariedade administrativa como um valor primacial e ao princípio da separação dos Poderes estatais.

Em recente decisão monocrática no Supremo Tribunal Federal (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental - DPF nº 45 MC/DF – 2004), sendo Relator o Ministro Celso de Mello, este lançou o seguinte despacho assim ementado:

“Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração).”

A decisão monocrática, mesmo isolada, do Ministro Celso de Mello não deixou de lançar luzes novas sobre a temática aqui em análise, já que aquela discussão judicial envolveu norma orçamentária. A ação de descumprimento de preceito fundamental foi ajuizada com o fito de questionar o veto do Presidente da República sobre o §2º do art. 55 (posteriormente renumerado para art. 59) da proposição legislativa que se converteu na Lei nº 10.707/2003 (Lei de Diretrizes Orçamentárias). O veto teria descumprido a Emenda Constitucional nº 29/2000, que garante recursos financeiros mínimos a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde. Foi, portanto, o Supremo Tribunal Federal chamado a decidir para evitar lesão a preceito fundamental, advinda de ato do poder público, quando do veto parcial à Lei de Diretrizes Orçamentárias, nos termos do art. 1º, caput, da Lei nº 9.882/997.

Tratava-se, pois de pedido de prévia proteção judicial em relação à Lei de Diretrizes Orçamentárias (Lei nº 10.707/2003) destinada a fixar as bases para a Lei Orçamentária anual de 2004. O pedido de tutela preventiva do Orçamento, ao STF, consagrava a necessidade de se assegurar a implementação e efetivação de políticas públicas em matéria de saúde. Eis, assim, um autêntico caso onde o Supremo Tribunal Federal é provocado para promover o controle jurisdicional de políticas públicas, através de uma atuação preventiva voltada a debelar afronta a preceitos fundamentais (Emenda Constitucional nº 29/2000).

Na citada acima decisão, o Ministro Celso de Mello do STF reconheceu o caráter excepcional do controle judicial, considerando que as atividades política e gestionária do Estado são originalmente de responsabilidade institucional do Poder Legislativo e do Poder Executivo. Acrescentou, contudo:

 “Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.”

Além de abrir as portas para uma dimensão política diferente da atuação do Poder Judiciário, sustentando a legitimidade do controle jurisdicional de políticas públicas, em face da separação dos Poderes - também delineou essa decisão outras nuances e limites à atuação jurisdicional. Defendeu claramente ser necessário o exame da razoabilidade da pretensão individual ou social, em conjunto com a existência de disponibilidade financeira do Estado para a realização das prestações positivas reclamadas. E não só o exame da disponibilidade financeira, como tradicionalmente se fazia.

Circunstância externa, contudo, não permitiu que essas inovadoras idéias pudessem ser objeto de julgamento colegiado pelo Supremo Tribunal Federal. É que o Poder Executivo, antes do julgamento da ação constitucional citada, se antecipou e remeteu novo projeto de lei, que se transformou na Lei nº 10.777/2003, restaurando, em tempo, o dispositivo vetado em sua integralidade, de modo que restou superado o descumprimento a preceito fundamental na Lei de Diretrizes Orçamentárias, sem prejuízos outros, já que apenas serve de norma orientadora da elaboração da lei orçamentária anual pertinente ao exercício financeiro de 2004. Com isso ficou, pois, superada a argüição de inconstitucionalidade e evitados os seus efeitos sobre a lei orçamentária do ano seguinte.

O tema do controle jurisdicional de políticas públicas também foi examinado e recebeu novos contornos no Superior Tribunal de Justiça. Tradicionalmente, o STJ sempre se notabilizara pela adoção de exegese comprometida com as idéias neoliberais da super-valorização, tanto da discricionariedade administrativa, quanto da separação dos Poderes, dificultando a possibilidade do Poder Judiciário intervir, diante de ações ou omissões administrativas, em programas, serviços e ações de governo - ligados à efetivação de direitos prestacionais, executados em descompasso com a Constituição ou mesmo a legislação infraconstitucional.

Recentemente, contudo, foi publicado julgamento da 2ª Turma do STJ extremamente afinado com as teses mais modernas, privilegiando o controle jurisdicional de políticas públicas. Importou o recente acórdão – que se espera não venha a fenecer como um posicionamento isolado daquele Corte superior – num giro de cento e oitenta graus em relação à orientação tradicional do STJ. Eis a ementa do acórdão da lavra de uma nossa ilustre conterrânea baiana, para nosso orgulho:

“Ato administrativo e processo civil – Ação civil pública – Ato administrativo discricionário: nova visão. Legitimidade do Ministério Público para exigir do município a execução de política específica, a qual se tornou obrigatória por meio da Resolução do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas. recurso especial provido” (STJ -2ª turma, R.ESP. nº 493.811, Rel. Min. Eliana Calmon, maioria, j. 11/11/2003, DJ 15/3/2004, p. 236).

O caso acima levado ao STJ merece breve menção, como ponto de partida para toda uma nova doutrina jurídica que se esboça e para a fala presente, neste evento organizado pelo Ministério Público da Bahia: tratou-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, através da Promotoria da Infância e Juventude da Comarca de Santos, visando obrigar a Prefeitura Municipal a implantar serviço oficial de auxílio, orientação e tratamento de alcoólatras e toxicômanos, ao argumento de que a Municipalidade mostrava-se renitente em cumprir as deliberações constantes da Resolução Normativa 04/97, do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Município de Santos, ferindo, com tal postura omissiva, os ditames do art. 88, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com efeito, com essa decisão emblemática, o STJ permitiu o controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário, através da tutela do orçamento e do reconhecimento do poder deliberativo dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, na estrita esfera das atribuições legais deles. Cuidou-se, também, de tutela preventiva, isto é, a inclusão de verbas no próximo orçamento, evitando-se a continuação, no futuro, do ato ilícito.

Saliente-se, porém que não houve com esse acórdão do STJ qualquer ingerência sobre as decisões político-administrativas de execução, tais como: obras e contratações que deveriam ser realizadas ou valores a serem consignados no orçamento vindouro; mantendo-se amplos espaços para as decisões político-administrativas dos Poderes competentes. A decisão limitou-se a exigir, em respeito aos direitos fundamentais da infância e adolescência, assegurados pela Constituição Federal como “prioridade absoluta”, o cumprimento de Resolução do colegiado municipal citado, como ato administrativo deliberativo (nos termos do art.88 do Estatuto citado) e que obriga o Poder Público a efetivar ações nesse sentido.

Trata-se, pois, de julgamento que pode se tornar paradigmático, caso a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça continue a se orientar no sentido dos motivos do presente julgado, estes bem distantes dos que sempre presidiram as construções anteriores e tradicionais, comprometidas com os velhos valores do Estado Neoliberal e do Positivismo Jurídico.

Já no âmbito dos Tribunais de Justiça estaduais e dos Tribunais Regionais Federais são bem mais comuns e fáceis de achar julgados que admitem o controle jurisdicional de políticas públicas, permitindo, também.

A título de exemplo, no Rio Grande do Sul, é de se referir a acórdão julgado pela 7ª Câmara Cível, em 12 de março de 1997, tendo como relator o Des. Sérgio Grishkow Pereira. Neste julgado, os Desembargadores do TJRS julgaram procedente o pedido formulado pelo Ministério Público e condenaram o Estado do Rio Grande do Sul a uma “obrigação de fazer consistente em incluir no próximo orçamento verba suficiente para criar, instalar e manter em funcionamento programas de internação e semiliberdade para adolescentes infratores”.

São freqüentes os precedentes jurisprudenciais ligados ao controle de políticas públicas em matéria de saúde. Há muitos julgados que determinam o direito à internação hospitalar, em reconhecimento e garantia ao direito à vida e à saúde, quando da ausência de leitos e vagas em Unidades de Tratamento Intensivo – UTI, na rede hospitalar. Um exemplo é a decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (8ª Câmara Cível - Agravo de Instrumento nº 135388000, Rel. Des. Ivan Bortoleto, j. 20/08/2003).

Também são incontáveis as decisões determinando, mesmo diante da escassez de recursos, o fornecimento gratuito de medicamentos. Pleitos desta ordem já chegaram até o Supremo Tribunal Federal, valendo citar o julgamento favorável à concessão da tutela no caso seguinte: STF-2ª Turma, AGRRE-271286, Rel. Min. Celso de Mello, unânime, j. 12/9/2000, DJ 24/11/2000, p. 101.

Antes mesmo deste julgado, o próprio Supremo Tribunal Federal também já havia se pronunciado, em outros precedentes, no sentido de reconhecer a obrigação do Estado de fornecer medicamentos a pessoas hipossuficientes, como, por exemplo, nos Recursos Extraordinários 195.192/RS, 236.200/RS, 247.900/RS, 264.269/RS, 242.289/RS e 255.627/RS.

Não é diferente, nestes casos, a posição do Superior Tribunal de Justiça, que, em inúmeros julgamentos, tem garantido o fornecimento de medicamentos a pacientes, a expensas do Estado. Essa nossa mais alta Corte de Justiça em matéria de aplicação da legislação infraconstitucional obrigou o Estado do Paraná a fornecer o medicamento Riluzol (Rilutek) a uma paciente portadora de esclerose lateral amiotrófica (STJ-1ª Turma, ROMS 11183/PR, Rel. Min. José Delgado, unânime, j. 22/8/2000, DJU 4/9/2000, p. 121, RSTJ 138/52).

Cite-se, também, dentre outros, um julgado que reconheceu ser obrigação do Estado o fornecimento de medicamentos para portadores do vírus HIV (STJ-1ª Turma, REsp 325337/RJ, Rel. Min. José Delgado, unânime, j. 21/6/2001, DJ 3/9/2001, p. 159).

Em todos estes casos, importa salientar, foi reconhecida a aplicabilidade imediata do direito à saúde, decorrente do art. 196, CF/88, permitindo-se o controle judicial do direito, apesar da existência ou não de disponibilidade financeira, em rubrica própria.

Construção de uma teoria jurídica comprometida com a efetivação dos direitos fundamentais, a partir desses precedentes judiciais registrados

A minuciosa investigação dos precedentes citados e de muitos outros que campeiam o pensamento atual permite espaço para algumas considerações. Muitas vezes, é necessário afastar, em tema de políticas públicas, a incidência rigorosa e cega de princípios constitucionais históricos, prevalentemente, através de uma ponderação de interesses.

Há hipóteses freqüentes, inclusive, em que órgãos jurisdicionais diferentes divergem quanto às soluções mais justas para um mesmo caso concreto. Assim, a primeira conclusão é que nessa fronteira com as políticas públicas sobressaem os chamados hard cases, na expressão de Ronald Dworkin, que pedem, para sua solução, argumentos firmados em paradigmas ético-políticos e em princípios jurídicos e firmados além do mais na alta sensibilidade judicial e no seu comprometimento com os direitos humanos:

“Em minha argumentação, afirmarei que, mesmo quando nenhuma regra regule o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente. Já devo adiantar, porém, que esta teoria não pressupõe a existência de nenhum procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos casos difíceis. Ao contrário, o argumento pressupõe que os juristas e juízes sensatos irão divergir freqüentemente sobre os direitos jurídicos, assim como os cidadãos e os homens divergem sobre os direitos políticos.” (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127-128).

Outra evidência é que não se tem até o presente momento, qualquer julgado que se constitua em verdadeiro “caso-líder”, tornando mais árdua a construção teórica:

“Caso-líder, consoante expressão consagrada no direito estadunidense significa que nenhum dos julgados ainda serviu de base para uma alteração substancial no pensamento pretoriano. Ao menos, até o presente momento, onde não se logrou superar, in totum, a cultura jurídica de índole liberal que forjou a formação profissional da maioria dos atores forenses deste tempo”. (op.cit.)

Contudo, embora os citados precedentes judiciais não indiquem um direcionamento sólido no sentido da ampla admissão da intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas pelos tribunais, não se pode descurar que, indiscutivelmente, as teses levantadas trazem, no mínimo, um alentado convite à reflexão e à renovação das idéias e das práticas.

A impressão que se tem é que os julgados que, a cada dia com mais freqüência, pululam saudavelmente na experiência forense, não estão, em sua maioria, arrimados em uma teoria sólida, segura, científica, que permita uma maior tranqüilidade no trato de questões ligadas às políticas públicas. Vezes há em que as decisões se escoram fortemente em argumentos sociológicos, sem contrapartida jurídica. Outras tantas são conduzidas pela urgência da proteção a bens de altíssima relevância.

Daí a grande incidência de julgados em matéria de saúde, às vezes até pouco sistematizados e sem qualquer apego a uma teoria jurídica consistente sobre as políticas públicas.

Com efeito, a temática em foco está a exigir urgentemente a definição dos seus reais contornos jurídicos. Isto permitiria uma maior facilidade para a tutela de outros direitos fundamentais sociais, difusos e coletivos, não incluídos no rol das situações graves e prementes, como acontece com o direito à vida e à saúde.

Os direitos fundamentais à educação, ao meio ambiente, além dos ligados à pessoa portadora de deficiência, ao idoso, à infância/adolescência e juventude, às relações de consumo, dentre outros, quando não vêm acompanhados ainda de situações de absoluta urgência e por isso não são acolhidos com tanta facilidade na esfera judicial, mesmo diante de omissões irresponsáveis na implementação de ações das políticas públicas.

Tais bens jurídicos sentem-se desprotegidos pela falta de uma teoria cientificamente adequada que, sem exageros, oriente o caminhar no sentido de um controle jurisdicional de políticas públicas, privilegiando a máxima aplicabilidade dos preceitos fundamentais (art. 5º, §1º, da CF/88)16, também a partir do controle judicial.

Conclusão

A prática empiricamente informará a construção das teorias e estas, revisitadas a partir das práticas renovadas, se transformarão em novas teorias, como num círculo virtuoso. Assim se construirá uma práxis transformadora na vida social. Em tese, é isso que se busca nessa discussão sobre Políticas Públicas e sobre suas formas diversas de controle público, especialmente o controle judicial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário