domingo, 9 de outubro de 2011

(1) DIREITOS HUMANOS - GENERALIDADES

O ACESSO À JUSTIÇA E O DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS, NA PERSPECTIVA DA PROMOÇÃO E DA PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA

Por Wanderlino Nogueira Neto

1. INTRODUÇÃO

A prevalência dos direitos humanos como um dos valores fundantes do Estado Democrático de Direito

O desenvolvimento das ações, programas e serviços das políticas públicas e a garantia do acesso à Justiça precisam ser colocados, entre nós, no Brasil, na perspectiva dos direitos humanos, isto é como formas de promoção e proteção de direitos humanos, de fortalecimento da democracia real, num Estado Democrático de Direito, onde a Constituição Federal elege como valores fundantes da República, a dignidade, a liberdade, a igualdade, a pluralidade e a prevalência dos direitos humanos.

O desenvolvimento de políticas públicas, como forma de promoção de direitos humanos

Não é possível se formular uma determinada política pública e conseqüentemente planificá-la, na perspectiva da promoção dos direitos humanos, sem uma reflexão introdutória que procure descrever e explicar o contexto social e político-institucional brasileiro. Tal reflexão e sua consequente teorização servirão de chave hermenêutica para os formuladores, planejadores, coordenadores, executores e controladores dessas políticas públicas, na perspectiva dos direitos humanos, isto é, elas servirão de marco referencial para o entendimento do quanto deve constar, para se garantir a promoção dos direitos humanos, através das ações (programas temporários e serviços permanentes) de todas as políticas públicas com incidência sobre a infância e a adolescência. Assim sendo essa análise de contexto será de muito maior validade ainda quando se tratar das ações da futura política nacional de direitos humanos infanto-adolescentes e dos seus planos, geral ou temático, em elaboração.

Visão social de mundo

A partir de uma determinada “visão social de mundo” essa análise do contexto social e político-institucional e em função dela as políticas públicas serão desenvolvidas como formas de promoção de direitos humanos e o acesso à Justiça será garantido Omo forma de proteção desses direitos se farão: não existe a possibilidade de assim proceder nessa perspectiva jus-humanista de maneira asséptica, com base em uma pretensa neutralidade axiológica e balizada por estratégias erráticas e descomprometidas. Há que se optar por uma determinada visão de direitos humanos, que se os coloque a serviço de um determinado projeto histórico, de um determinado modelo de democracia e de desenvolvimento humano, isto é, de determinados valores fundamentais, determinados paradigmas ético-políticos e princípios jurídicos.

Assim a depender desse projeto histórico, se se o firmar na perspectiva dos direitos humanos e sua engajada e comprometida com as necessidades, os desejos e os interesses da classe trabalhadora e dos grupos vulnerabilizados (em função dos atentados a sua dignidade e liberdade e da negação da sua identidade de geração, gênero, raça/cor, etnia, orientação sexual etc.) – necessário se torna construir novo ordenamento jurídico e novo ordenamento político-institucional, ambos de caráter transformador e emancipatório e com igual engajamento e compromisso.

Novos discursos científicos, normativo-jurídicos e políticos precisam ser pensados e explicitados, com tal embasamento e finalidade. Novas práticas sócio-políticas decorrentes precisam ser formuladas e desenvolvidas, com tal embasamento e finalidade também. É necessário que reflexão e prática respondam de maneira transformadora e libertária a todo um contexto social, marcado estruturalmente por processos velados ou explícitos de (1) negação da essencialidade humana de pessoas, grupos e classes sociais, através da alienação na cotidianidade, da espoliação da força de trabalho, da subalternização sócio-econômica e das iníquas desigualdades sociais. Respondam igualmente a todo um (2) contexto social igualmente marcado pelo desrespeito à diversidade identitária de cada um e de cada uma. E assim, como decorrência disso tudo, respondam finalmente a um (3) contexto social onde os grupos dominantes do Estado ampliado (governo e sociedade civil organizada) e da população genericamente, como um todo, pretendam ilusoriamente “resolver” (sic) a questão social, via judicialização dos seus conflitos estruturais e das suas demandas conjunturais, preponderante e reducionistamente, por exemplo.

Diante desses três blocos de indicadores acima enumerados, torna-se importante construir nova e especial maneira de se encarar, por exemplo, as situações de violência, exploração, discriminação, negligência, crueldade e opressão (como violações ou ameaças aos interesses, desejos, necessidades e direitos desse público aqui citado e preferenciado). Uma nova maneira também de se intervir no enfrentamento dessas situações através do acesso à Justiça e do desenvolvimento de políticas públicas, minimamentemente .

Preliminarmente, toda tentativa de fazer tudo isso com base em uma pretensa neutralidade axiológica e ideológico-política deve ser rechaçada: é preciso pensar e atuar a partir de um compromisso com certos paradigmas, princípios e valores e com uma determinada luta libertária - nesse sentido, revolucionária. Essa opção de luta pela transformação é uma das opções políticas que se pode escolher (ou não?!), em função de uma preliminar e determinada visão social de mundo. Ou seja, de uma determinada forma de analisar a conjuntura, tendo como base e justificativa uma utopia emancipatória/libertária . Mas também se pode optar por outra qualquer forma de analisar a conjuntura, tendo como base outras perspectivas, até mesmo a ótica fundada em ideologias autoritárias/totalitárias e conservadoras. Contudo, há sempre que se exigir que sejam explicitadas essas visões sociais, sem escamoteações, ambigüidades e falsos consensos.

A partir dessa perspectiva transformadora/emancipatória (revolucionária?), posta acima, isto é, a partir de uma determinada visão social de mundo nessa perspectiva - nossa reflexão teórica e nossa prática de ação (pensamento em ação) deveriam buscar, no atual momento histórico, apoio estratégico na teoria ou doutrina jus-humanista , para construírem, tanto uma teoria geral dos direitos fundamentais e seu correspondente ordenamento jurídico estatal (ou não estatal), quanto uma política estatal (ou não estatal) de garantia, promoção e proteção desses direitos fundamentais, enquanto direitos humanos positivados minimamente pelo Estado .

Síntese: Analisar o contexto social e político-institucional brasileiro, do qual emergem as relações entre o mundo adulto e o infanto-adolescente, produzir um direito positivo e formular políticas de Estado que respondam a esse contexto devem ser tarefas marcadas por uma pré-definição da perspectiva político-ideológica a partir da qual se vai proceder a essas tarefas. E exige além do mais uma explicitação do nosso engajamento e dos nossos compromissos com os interesses, desejos e necessidades da classe trabalhadora e dos grupos vulnerabilizados em sua essencialidade humana (dignidade e liberdade) e em sua diversidade identitária (gênero, raça, etnia, geração, orientação sexual, localização geográfica etc.). Isso exige uma explicitação clara do lócus a partir do qual se fala: transformador-emancipador-empoderador? ou conservador-tutelar-protetor?
2. ANÁLISE DE CONTEXTO

(A) UM CONTEXTO SOCIAL MARCADO PELA AFIRMAÇÃO OU PELA NEGAÇÃO DA ESSENCIALIDADE HUMANA

A formulação e aprovação de quaisquer das políticas de Estado (sociais, institucionais, infra-estruturantes e econômicas ) dependem preliminarmente de uma análise da situação, da conjuntura, ou seja, dependem do contexto social sobre o qual elas vão incidir; oportunidade na qual se levantará, analisará e avaliará o quadro multidimensional das relações sociais, com suas condicionalidades, em conta os seguintes indicadores, tomados didaticamente como exemplificativos das diversas formas de negação da essencialidade humana, ou seja, minimamente da dignidade e liberdade:
(1) alienação na vida cotidiana (consumismo, sexismo, reificação, heterogenização social etc.);
(2) subalternização da classe trabalhadora e das franjas vulnerabilizadas, própria dos regimes capitalistas, em qualquer dos seus modelos;
(3) desigualdades e iniqüidades;
(4) judicialização escamoteadora e predominante da questão social.

Tanto no tocante às ações das políticas públicas (ou políticas estatais) minimamente nas áreas da saúde, educação, assistência social, da cultura, segurança pública, relações exteriores, direitos humanos e planejamento/orçamentação (por exemplo), quanto no tocante às ações de garantia e qualificação do acesso à Justiça - todos os processos de levantamento e análise de dados e informações passam a ter mais sentido e mais efetividade se colocarmos eles todos confrontados com os específicos dados e informações, a respeito dos altos níveis de negação da essência humana (dignidade e liberdade) que marcam e condicionam essas ações públicas ou estatais, tanto as governamentais, quanto as chamadas não governamentais.

Por causa disso, é necessário, que essa opção político-ideológica nos leve, por exemplo, a entender que a cultura/arte, o pensamento (“saber”) técnico-científico e o popular, a normativa e as práticas sociais e políticas devem responder de maneira revolucionária, transformadora e libertária a todo um contexto social de alienação na cotidianidade, de subalternização sócio-econômica e de desigualdades e iniqüidades.

É necessário assim que - através das “ciências, das artes e do trabalho criador” - se faça “suspender a heterogeneidade da vida cotidiana” (ou “cotidianidade”) , onde estão submersos e anulados esses oprimidos todos, como meros espectadores da vida; levando-os a um processo irreversível de transformação em verdadeiros sujeitos históricos conscientes e por fim levando-os a um processo de anulação da “reificação cotidiana” das relações sociais entre indivíduos e a uma práxis revolucionária- libertária, através ações emancipadoras da classe trabalhadora e dos citados grupos vulnerabilizados.

(B) UM CONTEXTO SOCIAL, MARCADO PELA AFIRMAÇÃO OU NEGAÇÃO DA DIVERSIDADE IDENTITÁRIA

Na maioria das sociedades, as diferenças biológicas entre seres humanos (mulheres/homens, heterossexuais/homossexuais/bissexuais, brancos/negros, crianças/adultos, por exemplo) justificam e legitimam desigualdades, no que diz respeito ao poder atribuído a um pólo sobre o outro. Isso se reconhecerá como uma cultura popular e institucional etnocêntrica, androcêntrica, adultocêntrica, homofóbica – p.ex., onde se estabelecem relações de discriminação, negligência, exploração e violência, num claro (mas raramente reconhecido) processo de hegemonia social, cultural, econômica e jurídica de algumas classes e de determinados segmentos populacionais em detrimento de outros.

A tarefa básica dos movimentos sociais e de suas expressões organizativas , nos últimos tempos, no Brasil, tem sido a de procurar incidir sobre o Estado e sobre a sociedade de modo geral, no sentido da deflagração e construção de um processo transformante-revolucionante, emancipatório, contra-hegemônico (social, cultural, político, econômico e jurídico), atuando nas brechas dos blocos hegemônicos - adultocêntricos, androcêntricos, etnocêntricos, homofóbicos etc.

Uma incidência que procura fazer com que o Estado (ampliado) e a Sociedade (difusa) abandonem, cada vez mais, aquela linha tradicional alienadora e meramente filantrópico-caritativa, na qual as suas ações se configuravam como uma benesse, apaziguando consciências e legitimando o higienismo dominante – uma linha castradoramente tutelar/repressiva.

Por sua vez, nascendo desses movimentos sociais e a eles vinculados (ou pelo menos, por eles influenciados), surgem determinados movimentos conjunturais de luta, por exemplo, em favor de uma nova normativa internacional e nacional de caráter emancipador e transformador, que possa ser considerada uma aliada política no processo maior de lutas dos movimentos sociais. Essa é uma luta conjuntural específica por um novo Direito e por uma decorrente e nova Política – estatais e societárias. Mas é importante que se reconheça também que nem sempre todos os segmentos ou blocos de certos movimentos conjunturais estão aliados aos verdadeiros movimentos sociais e são orgânicos de relação a estes. Na verdade, estão alguns deles aliados (mesmo que sub-repticiamente) aos grupos hegemônicos androcêntricos, etnocêntricos, adultocêntricos, por exemplo.

Essa luta transformadora e emancipadora, por um novo Direito e por uma nova Política, ambos em favor dos oprimidos, precisa ser feita como parte da “incidência-em-combate” , mais ampla, dos movimentos sociais na luta dos trabalhadores e dos citados grupos vulnerabilizados e marginalizados (em especial, discriminados, negligenciados, explorados, violentados), para o enfrentamento da questão social, em sua radicalidade; todavia, sem fugas para uma pretensa e falsa solução, via judicialização predominante da questão social, por exemplo.

Normalmente, é a partir de dentro do próprio bloco hegemônico capitalista que a luta pelos direitos da classe trabalhadora e de grupos vulnerabilizados em sua essencialidade e identidade se faz, com um discurso crítico e uma prática engajada e conscientizadora: compromisso, solidariedade e luta.

Mais radicais e, portanto mais rápidos e efetivos seriam os discursos e as práticas contra-hegemônicas e emancipatórias da classe trabalhadora e dos grupos vulnerabilizados na afirmação e defesa da sua essencialidade humana e da sua diversidade identitária, se o nível de consciência e organização desses blocos chegasse a ponto de construírem um real "protagonismo", nessa luta, inclusive buscando alianças diretas com outros oprimidos - um fortalecendo o outro.

A participação proativa desses segmentos sociais dominados passaria a se dar a partir deles próprios e não como concessão das oligarquias e como decorrência de políticas, programas e projetos artificiais que, mais das vezes, promovem de fora para dentro essa pro-atividade e ao mesmo tempo a emolduram e domesticam. Isso se deveria aplicar também ao segmento infanto-adolescente, por mais difícil que seja e pouco comum entre nós.

Como dizia Berthold Brechet: só quando se tem a corda ao pescoço é que sabe quanto nos pesa a bunda.

Nessa luta emancipatória e transformadora em favor das minorias políticas, há que se procurar alternativa nova, através de instrumentos normativos, de espaços públicos (institucionais ou não) e de mecanismos estratégicos (políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos e jurídicos) que se tornem verdadeiros mecanismos de mediatização , nessa luta pelo asseguramento da essencialidade humana e da diversidade identitária, vencendo esse processo de des-humanização, de dominação e opressão, de desclassificação social, no jogo hegemônico e contra-hegemônico que condena grandes contingentes da sociedade, no Brasil e no mundo.

Além do imprescindível atendimento público tradicional pelas políticas sociais (educação, saúde, cultura, habitação e especialmente da assistência social) e além do acesso à Justiça pela judicialização dos conflitos e demandas - a luta contra as relações dominadoras, em detrimento da essencialidade humana e da identidade, deve ser vista como uma questão de garantia, promoção e proteção de direitos humanos, tanto no seu sentido ético-político, quanto jurídico.

Reconheça-se, preliminarmente, que se devem tratar todas e todos e a cada uma delas e cada um deles, em respeito a sua essencialidade humana como sujeitos (sociais e jurídicos), em respeito a sua identidade de gênero, raça/cor, geração, orientação sexual, localização geográfica, etnia etc.

Não é preciso que a proteção dessas pessoas citadas, o cuidado com elas, se torne exercício de um poder arbitrário da sua família, da sua comunidade, da sociedade em geral ou do Estado. Não se protege uma pessoa como se protege um pequeno animal feroz e perigoso, esquecendo-se que ele, de qualquer maneira, é um ser que já tem todos os direitos de um cidadão e como tal deve ser tratado; revertendo-se o processo de abortamento da sua cidadania. Eles não precisam de proteção intrinsecamente, mas sim em determinadas circunstâncias, situações, condições, momentos. Daí o equívoco de certas medidas como o abuso na internação socioeducativa e no acolhimento institucional (abrigo), a arbitrariedade totalitária das portarias judiciais de “toque-de-recolher”, certos modelos de depoimentos judiciais protegidos (“sem dano”?) – por exemplo.

Em uma luta emancipatória e transformadora em favor de crianças e adolescentes (jovens e idosos, por extensão), há que se procurar alternativa nova, através de instrumentos normativos, de espaços públicos (institucionais ou não) e de mecanismos estratégicos (políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos e jurídicos) que se tornem verdadeiros mecanismos de mediatização, nessa luta pelo asseguramento da essencialidade humana e da diversidade identitária geracional, vencendo esse processo de des-humanização, de dominação e opressão, de desclassificação social de crianças e adolescentes, no jogo hegemônico e contra-hegemônico que condena grandes contingentes desse público infanto-adolescente, no Brasil e no mundo.

Assim sendo, crianças e adolescentes não deveriam interessar ao Direito e à Política Pública apenas quando integrassem especificamente grupos determinados dos “excluídos”, “oprimidos”, “vitimizados”, “em risco social e pessoal”, “drogadictos”, “infratores”, “explorados no trabalho e sexualmente” etc. É preciso ir mais ao fundo. Deveriam todos eles interessar antes como parte de um bloco contra-hegemônico, pelo simples fato de serem crianças e adolescentes e, portanto como tal tratados pelo bloco hegemônico adultocêntrico como negativamente diversos, como menores em direitos, como objetos de uma proteção tutelar e limitadora.

A depender da resposta dessas crianças e adolescentes, em sua relação com a família, a justiça, a polícia, os conselhos tutelares, as igrejas, a escola, os órgãos de atendimento assistencial etc.etc., eles ganham rótulos e são categorizados no processo de triagem próprio desses sistemas de regulação social.

Sob esse prisma específico, a análise da situação de dominação adultocêntrica reenvia ao tema da “reação social”, inicialmente informal-difusa da sociedade e comunidade, depois formal-institucional do aparato estatal. E essa reação social merece consideração quando se pretende aprofundar na construção do aqui se chamou de novo Direito e nova Política.

Reação social que além do mais, numa linha de radicalização, pode se tornar inclusive desviante e marginal, arbitrária e violenta: por exemplo, os arrastões, as institucionalizações ilegais, os procedimentos abusivos, a proibição sistemática do ir-e-vir , as torturas, os banimentos, o extermínio. Reação social pela qual, os comportamentos infanto-adolescentes, que se distanciam das normas prevalecentes nos seus ambientes, são reprovados, rotulados-estigmatizados, condenados à vendeta social, quando não expurgados violentamente (extermínio?).

Por isso, quando se enfrenta a questão da relação entre adultocentrismo e reação social, urge se considerar a lógica e a prática dos atores envolvidos, de ambos os lados da ordem de geração – mundo adulto e mundo infanto-adolescente. Ou seja, é importante considerar-se a perspectiva do segmento social dominado e subalternizado, em face da norma e do sistema de regulação social dos quais se distancia e em face inclusive dessa reação social decorrente de tal distanciamento. E deve-se considerar a ótica dos aparelhos de repressão, dentro dos sistemas de regulação social, em face da marginalização e do marginalizado. Isto é, igualmente importa em se considerar o itinerário socio-biográfico da criança ou do adolescente. A maneira pelas quais crianças e adolescentes avaliam sua capacidade de operacionalizar suas normas pessoais de referência e/ou as normas do seu meio próximo circundante.

Quando se enfrentam questões, por exemplo, como a dos “garotos michês” e das “garotas de programa” na exploração sexual-comercial e a dos “aviõezinhos” no narcotráfico - importa levar-se em conta a lógica peculiar deles, as suas especiais necessidades sexuais, sócio-culturais e financeiras, a normatização peculiar dos seus guetos e o papel desclassificante/reclassificante, normatizador e sancionador/protetor de seus pais e parentes, de policiais, de juízes e promotores, de seus advogados, de professores, dos namorados e companheiros, do cafetão, do pai-de-rua, do bicheiro, do traficante etc.

Esse público infanto-adolescente deve ser chamado a “superar” essa condição de vida considerada marginal, imoral, ilegal. E não apenas moralisticamente a “negá-la”. Um menino ou uma menina que vivia da prostituição, mesmo deixando essa forma de expressão sexual e profissão , não poderão ter uma vida sexual igual a de um outro adolescente de sua mesma idade, mas que não viveu essa situação, de exacerbação dos seus desejos e necessidades: terão a partir de agora novas exigências sexuais, sócio-culturais e financeiras que precisam ser consideradas. Nem tão pouco a eles se poderá oferecer algum tipo de posto de trabalho rotineiro, repetitivo, desprazeiroso, que lhe renda tostões e sem perspectivas de crescimento, de trazer-lhes reconhecimento social acima do padrão médio pequeno-burguês.

Na interatividade entre indivíduo e agrupamento se encontra a possibilidade de sobreviver e resistir, mesmo no interior das relações dominadoras e opressora adultocêntricas. A galera e a turma criam um novo “espelho”, onde esse adolescente pode se olhar agora sem susto, elevando sua baixa auto-estima. O “mundo-lá-fora”, os “outros” e suas “regras” passam a ser “careta”, isto é, incômodos, obsoletos e perigosos. Um mundo velho a impedir o surgimento do novo, do “radical”. E a solução estará na busca do "irado". Os funckeiros da Favela Tal, a turma da Rua Qual, aquela Galera de Rock-Garagem, aquele Grupo de Grafiteiros, os meninos-de-rua liderados por Beltrano, os drogadictos ligados a Fulano, determinados michês, travestis e assemelhados etc.etc., passam todos a se sentir fortes e reconhecidos socialmente, exclusivamente em seus redutos, em seus agrupamentos, que lhes reforçam a auto-estima construída nessa “rede de relações entre pares”. Mas, a reforçar também o sentido de exclusão, apartação, subalternização e dominação. E, a partir desse sentido de pertença ao agrupamento e desse auto-reconhecimento social no seio do grupo dominado, se produz uma cultura própria a ser considerada.

Uma arte peculiar, por exemplo, que se torna instrumento operacional da superação da crise vivida pelo adolescente. Mas um instrumento operacionalizador também desse distanciamento da norma e de contestação ao sistema de regulação social. E igualmente de integração mais radical e permanente do adolescente a sua galera, gang etc. Assim sendo, por essa “cultura marginal” passam também os processos de neutralização da subalternização/alienação, de ascensão social e de reconhecimento social da sociedade como um todo, inclusive do próprio Sistema, antes negado e do qual se desviou o adolescente e sua galera. Essa transformação passa, por exemplo, pelo grafite, hip-hop, funk, rap, pagode, história-em-quadrinhos, banda-garagem. E pela moda.

Em conclusão: “Não há caminho melhor no processo pedagógico para produzir essa ’transformação’ do que a introdução dos conceitos e das práticas de arte, cultura, beleza – minha prática no âmbito da educação e da arte leva-me a afirmar que a convivência com a estética é um direito fundamental da criança e do jovem, qualquer seja sua situação existencial” (LA ROCCA)

Quando se trata de enfrentar a problemática da dominação e opressão adultocêntrica (discriminação, negligenciação, exploração e violência) da infância e da adolescência (a lhes fazer abortada a cidadania), até o momento, uma dúvida em princípio vem à mente, diante do quadro geral da efetivação da normativa legal e da operacionalização das políticas e das ações públicas, no Brasil:
 As crianças e os adolescentes, quando marginalizados, estarão condenados, sem alternativas, à "tríplice danação da solidão, do gueto ou da fogueira" (Jean GENET)?
 Qualquer solução terá que vir numa linha soterista-messiânica , a partir de fora e de cima – como uma outorga, uma salvação, uma redenção, marcada pelo sinete do perdão abastardador e alienador? Terá que vir numa linha puramente assistencialista/repressora e tutelar, desconsiderando a condição de cidadania dessa criança e desse adolescente?
 Ou só seria possível uma resposta repressora, violenta e arbitrária do Estado e da sociedade - como ideológica justificativa da repressão à violência de crianças e adolescentes “desviantes-marginalizados”?
 Devem eles se tornar também objeto de incidência do discurso e da prática daquele chamado “desvio institucional”, imputável aos próprios organismos oficiais de regulação social (arrastões, constrangimentos ilegais, torturas, extermínios etc.?

Há que existir alternativa. Assim, além do imprescindível atendimento público tradicional pelas políticas sociais (educação, saúde, cultura, habitação e especialmente da assistência social), a luta contra as relações adultocêntricas deve ser vista como uma questão de garantia, promoção e proteção de direitos humanos. Reconheça-se, preliminarmente, que se devem tratar todas as crianças e todos os adolescentes, e a cada um deles, em respeito a sua essencialidade humana como sujeitos de direitos e em respeito a sua identidade geracional como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Isto é, criança-cidadão e adolescente-cidadão que precisam de pessoas e grupos, responsáveis pela promoção e defesa dos seus direitos à participação, à proteção, ao desenvolvimento e à sobrevivência. Mas, eles próprios também responsáveis por seus atos, por sua vida.

A criança e o adolescente, em si, já carregam uma carga de negatividade muito forte, que lhe impõe a ordem social adultocêntrica e que acabam assumindo. Importante se torna, então, a focalização estratégica positiva nos direitos e nas possibilidades práticas de sua exigibilidade. Com essa postura positiva, abandonamos também a descrença que nasce do “modelo do dano” (tanto dos atores oprimidos-dominados, quanto dos agentes públicos que com eles lidam), em favor da promoção da “resiliência”, enquanto potencial humano de passar por experiências adversas sucessivas, sem comprometimento da capacidade de superar esses percalços, de fazer bem as coisas e resgatar a própria dignidade. Promover a resiliência da criança e do adolescente significa fazer com que ele consiga construir seu sentido de vida e das coisas, seu lugar no mundo, no presente e, principalmente no futuro. Como diz Cenise Vicente:
“A resiliência é um fenômeno psicológico construído e não tarefa do sujeito sozinho; as pessoas resilientes contaram com a presença de figuras significativas, estabeleceram vínculos, seja de apoio, seja de admiração; tais experiências de apego permitiram o desenvolvimento da auto-estima e autoconfiança” (VICENTE ).

Por sua vez, o fortalecimento da reflexão e da atuação da própria criança e do próprio adolescente forçosamente nos levará ao ponto mais importante nesse processo: a imprescindível promoção da sua participação proativa na vida social em geral e particularmente no planejamento e no desenvolvimento das estratégias de sua integração social, fortalecendo neles um sentido de empoderamento (=empowerment), enquanto estratégia de potencialização do seu protagonismo social, enquanto metodologia para a garantia do seu direito de “ser ouvido e de ter sua opinião considerada” (CDC)

As crianças e os adolescentes, de um lado, não podem ser “massa de manobra”, manipulados por seus próprios dominadores. De um lado, não podem ser chamados a participar apenas reativamente, como forma de legitimação de um formalista “protagonismo social” ou de uma falsa participação, ouvindo-lhes as opiniões, as vezes, mas sem as considerar. Ou não podem de outro lado, ser deslocados para espaços meramente e equivocadamente “lúdicos” e apartado. Fazendo com que eles percam sua capacidade de incidência sobre os espaços e mecanismos de discussão e ação política, sobre seus interesses, desejos e necessidades: fazê-los “brincar de casinha de boneca” simbolicamente, demarcando preconceituosamente espaços e mecanismos do mundo adulto e do mundo infanto-adolescente, sem pontes e sem parcerias.

Diante dessas duas alternativas deformantes da participação infanto-adolescente, é preciso evitar que, em certas circunstâncias (no caso de conferências, de seminários e encontros temáticos e outros tipos de eventos, promovidos pelo governo ou pela sociedade civil), crianças e adolescentes participem apenas de maneira reativa ou decorativa.

Nessas circunstâncias, os “adolescentes pseudo-adultos” (mini-adultos!?) são levados a um protagonismo individualista, descolados que ficam da sua identidade geracional e da sua inserção em organizações próprias e representativas. São atores-protagônicos, ao modelo teatral e cinematográfico, treinados para tal por determinadas lideranças societárias ou por seus pais/parentes, com discursos repetitivos e cheios de jargões; são crianças e adolescentes “prodígios”, que não conseguem formatarem um discurso próprio e autônomo.

Ou de outro lado, deve-se evitar igualmente que seus mecanismos de sobrevivência e resistência aos processos de dominação adultocêntrica sejam usados e manipulados (inclusive por eles próprios!) como forma de defesa no ambiente adulto, principalmente naqueles espaços de caráter adultocêntrico (explícito ou aparente), onde predominam as falas ou discursos técnicos, científicos e políticos nitidamente competente-exclusores, antagônicos ao saber popular e não-científico-formal: os condenáveis juridicês, economês, biologicismo-higienista, sócio-psicologista, de caráter elitista e corporativista etc.

Por exemplo, o mecanismo da guetificação e do uso exclusivo da linguagem de gueto, quando esses atores ou só aceitam falar e atuar exclusivamente em seus guetos formais. Ou quando aceitam participar de ambientes imaginados hostis (o mundo adulto, visto simplificadamente) o fazem de maneira defensiva, usando como forma de comunicação codificada a linguagem do seu gueto, sem tentar construir pontes, nem assumir compromissos de luta política, construindo linguagens que sejam facilitadoras da comunicação para os processos de “doutrinação” e de “propaganda” , como formas de incidência política

Como conciliar a comunicação necessária nascida da sua essência humana com a linguagem própria da sua diversidade identitária de geração (e mais, de gênero, raça, orientação sexual, localização geográfica etc.)?

Não se nega a validade da linguagem do gueto, da comunicação codificada/semiótica , quando se está circunstancial e conjunturalmente no seu gueto e se constrói ali, com uma fala peculiar, sentido de pertença: realmente não há como se condenar indiscriminadamente a vivência em guetos quando o chamado mundo lá fora é realmente hostil. Mas a guetificação é meio, estratégia de luta e não um fim em si mesmo. Mas nunca como forma de alienação e anestesiamento de suas lutas por reconhecimento, respeito e libertação.

As lideranças infanto-adolescentes que foram lançados a vivências em guetos (prostitutos, gays, travestis, ciganos, meninos-de-rua, drogadictos, infratores, abrigados, negros etc.) precisam aceitar construir as pontes com o resto da sociedade organizada, para possibilitar que sejam instrumentos de “mediatização” , isto é, defenderem os desejos, interesses e necessidades do seu grupo vulnerabilizados em seus direitos. E para isso precisam fazer cessar a cantilena interminável e falsa de que o único empecilho para a luta no meio da sociedade e do aparelho estatal é a “linguagem”, quando na verdade lhes falta um processo de conscientização da suas necessidades, desejos e interesses e de explicitação tática, de alguma forma, formulando esse discurso, próprio em termos identitários, mas comunicantes e inteligíveis minimamente.

Capacidade para intervirem têm, quase sempre, crianças e adolescentes nesses espaços de construção do social, ao seu nível de maturidade. Mas, às vezes, falta-lhes capacitação em certos conhecimentos e treinamento em certas habilidades, para qualificar e fortalecer essa atuação/comunicação, como evolução da sua capacidade ou desenvolvimento. É preciso, pois se discernir entre o processo natural de desenvolvimento, de evolução da capacidade desses adolescentes e dessas crianças, com o processo construído de desenvolvimento de suas competências políticas, científicas, técnicas (formação, educação etc.).

“A quantidade e qualidade das oportunidades de participação na resolução das situações reais influenciam os níveis de autonomia e de autodeterminação que eles serão capazes de alcançar também na vida pessoal, familiar, profissional, cívica, social (...) passa a ter diante de si uma oportunidade de ‘mobilizar’ em favor de uma causa, em favor de uma vida melhor, em níveis profundos, como uma opção de natureza pessoal, que lhe é fonte de prazer, de gratificação, de sentido de auto-realização”. (“Atendimento ao Adolescente em Conflito com a Lei – Reflexões para uma Prática Qualificada” in Caderno n.01 / DCA-SNDH-MJ / org. Wanderlino Nogueira Neto / 1998).

Por fim, constate-se mais: as situações de negligência, exploração, violência, opressão e particularmente de discriminação, a que estão submetidos crianças e adolescentes, exacerbadas a partir de uma situação ou de desvantagem social (em função da raça, etnia, gênero, sexo, morbidade, pobreza extrema etc.), ou de vulnerabilidade (exploração sexual, abandono, exploração no trabalho etc.) ou de conflito com a lei (infração), justificam o quanto suficiente “discriminações positivas” em favor deles, com ações afirmativas que compensem esse quadro maligno desencadeador ou potencializador da dominação adultocêntrica.

Neste ponto de reflexão, interessa aprofundar a discussão especificamente sobre a contra-hegemonização política e jurídica, em favor dos segmentos geracionais submetidos a esse processo de dominação, em nossa conjuntura, mais particularmente crianças e adolescentes. É imprescindível que se creia que o Direito tem um poder transformador maior do que tradicionalmente se atribui a ele, em nosso meio, ainda muito marcado por um "substancialismo jurídico” .

É imprescindível, além do mais, que se creia que as Políticas de Estado têm igualmente poder transformador, talvez menor do que tradicionalmente se atribui, pouco marcado ainda pela idéia de que a formulação e desenvolvimentos dessas políticas estatais fazem parte de um processo sócio-político mais amplo, meta-estatal, onde as pré-definições políticas nascem do próprio povo organizado, com capacidade de incidência sobre essas políticas públicas.

Um Direito formulado pelos poderes do Estado é mais amplo e profundo que a Lei que o reflete, mas não o esgota. E, de outro lado, um mais amplo conceito de Direito, insurgente do meio da sociedade, é mais profundo e mais legitimo que aquele citado Direito estatal e por conseqüência que a lei.

3. UM CONTEXTO POLÍTICO-INSTITUCIONAL DE RESISTÊNCIA ÀS NEGAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS E DE AFIRMAÇÕES (GARANTIA SISTÊMICA) DESSES DIREITOS

A tradição do pensamento (de caráter multidimensional ) sobre direitos humanos e especificamente do direito internacional dos direitos humanos, por exemplo, leva à utilização da consagrada expressão "promoção e proteção dos direitos humanos", para se qualificar o ordenamento normativo e político-institucional internacional e interamericano, a respeito.

Nesse sentido, é de se conferir os textos de convenções, acordos, declarações e outros documentos internacionais ou multinacionais a respeito. É de se conferir, além do mais, a farta produção doutrinária científica (multidisciplinar/multidimensional ), em torno dos direitos humanos, no mundo. É de se conferir, finalmente, o já criado e implantado sistema internacional e regional interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos (em termos de instituições e mecanismos), com seus órgãos integrantes e seus mecanismos estratégicos de exigibilidade de direitos

A partir da ratificação dos diversos instrumentos normativos internacionais, a respeito do tema, os países no mundo inteiro têm adequado seu ordenamento jurídico e seu ordenamento político-institucional, internos, aos paradigmas ético-políticos e aos princípios jurídicos dos direitos humanos. Assim se vem fazendo no Brasil com a ratificação de toda normativa internacional sobre direitos humanos, dando-lhe caráter de norma constitucional por equiparação, em face do disposto na recente Emenda Constitucional 45.

A expressão “promoção dos direitos humanos” isoladamente se usaria no sentido da criação de condições político-institucionais para a realização/efetivação dos direitos, a se fazer principalmente através do desenvolvimento das políticas públicas . E, por sua vez, a “proteção dos direito humanos”, também isoladamente, se usaria como acesso à Justiça, para responsabilização dos violadores e para a defesa dos violados, no caso de violação ou ameaça a esses direitos, através minimamente da política judicial e público-ministerial e subsidiariamente das políticas públicas. Desse modo, a expressão mais ampla proposta de “garantia, promoção e proteção de direitos humanos” consegue abarcar o gênero e suas duas espécies.

De qualquer maneira, o essencial é que a normatização jurídica das relações sociais seja vista como parte integrante das esferas do direito internacional dos direitos humanos e do direito constitucional brasileiro (mais especificamente da sua teoria geral dos direitos fundamentais), como uma especialização desses dois ramos do direito.

A expressão “garantia de direitos humanos”, no seu sentido ampliado, tem prevalecido em nosso meio, merecendo inclusive sua consagração, por exemplo, pela normativa operacional básica a respeito dela no campo infanto-adolescente, ou seja, a Resolução 113 do Conanda. Esta última expressão igualmente tem a favor do seu uso no Brasil a circunstância de que o texto constitucional pátrio a consagra , quando se trata de assegurar, através de mecanismos de exigibilidade específicos (“garantias constitucionais”), a efetividade dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos cidadãos. E assim, quando se falar em “garantias de direitos humanos” de maneira simplificada, poder-se-á usar igualmente a expressão “garantia, promoção e proteção de direitos de humanos”, como sinônimas.

Em verdade, o ordenamento jurídico brasileiro, em nenhum momento, é suficientemente claro quanto a qualquer “sistema de garantia de direitos humanos”: trata-se mais de uma inferência, no campo dos direitos humanos infanto-adolescentes, especialmente a partir dos artigos 86 a 90 do Estatuto da Criança e do Adolescente. No campo dos direitos humanos de gênero, de etnia, de orientação sexual e de raça/cor - toda a normativa editada até o momento e todas as políticas especiais formuladas, ambas a respeito desses direitos humanos especializados, também nos fazem inferir a existência desse sistema jus-humanista, com marco nos direitos humanos gerais do cidadão: Programa Nacional de Direitos Humanos (III), Estatuto da Igualdade Racial, Estatuto do Idoso, Estatuto do Índio etc. etc.

Todavia, o reconhecimento no Brasil de sistemas (holísticos) de garantia de direitos humanos, gerais e especiais, vem mais de uma influência e da transposição dos modelos internacionais e regional (interamericano) similares. Esses sistemas garantistas nascem muito mais do espírito dos tratados, convenção e outras normas, da jurisprudência, dos princípios gerais do direito, do costume – fontes do direito internacional público.

No passado, à época da edição das leis que suplementaram as normas constitucionais de 1988 (ECA, LOAS, LDB etc.), a reflexão sistemática sobre instrumentos e mecanismos de garantia, promoção e proteção de direitos humanos no Brasil não tinha alcançado o alto nível que alcançou nos dias de hoje: intuía-se a necessidade de a-tecnicamente “atender direitos”, num esforço louvável para se superar o velho paradigma do “atendimento de necessidades básicas”, acolhendo-se o novo paradigma da “garantia e promoção/proteção de direitos humanos”.

Deste modo, dever-se-á interpretar a legislação brasileira infraconstitucional, a partir dos princípios e diretrizes da teoria geral dos direitos fundamentais (direito constitucional brasileiro) e do direito internacional dos direitos humanos; fazendo-se uma interpretação sistêmica dos seus dispositivos, em harmonia com as demais normas desses campos do Direito, tanto na ordem jurídica nacional, quanto internacional.

4. PREVALÊNCIA OU SUPLEMENTARIEDADE DAS INTERVENÇÕES JUDICIALIZANTES NA QUESTÃO SOCIAL?

A questão social representa uma das perspectivas possíveis de análise da sociedade. Mas não há consenso na fundamentação dessa análise: nem todos reconhecem que existe uma contradição entre capital e trabalho, como fundamento da questão social, como forma de análise.

Ao utilizarmos, na análise da sociedade, tal categoria citada, estamos realizando uma análise na perspectiva da situação em que se encontra a maioria da população – i.é. aqueles que só têm na venda de sua força de trabalho os meios para garantir sua sobrevivência. Com o emprego dessa categoria ressaltam-se as diferenças entre trabalhadores e capitalistas, no acesso a direitos, nas condições de vida. Com ela busca-se entender as causas das desigualdades e o que essas desigualdades produzem, na sociedade e na pessoa humana. A partir da questão social é possível se buscar formas várias de superá-las – formas de rebeldia.

Conceituações:

“A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. (CARVALHO e IAMAMOTO. 1983)

“A questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação” (TELES.1996)

Os mais diversos saberes e as mais diversas institucionalidades e profissões têm suas reflexões e atuações determinadas pela Q.S.: o médico, o assistente social, o psicólogo, o engenheiro, o advogado, o educador, por exemplo.

“A expressão questão social é tomada de forma muito genérica, embora seja usada para definir uma particularidade profissional. Se for entendida como sendo as contradições do processo de acumulação capitalista, seria, por sua vez, contraditório colocá-la como objeto particular de uma profissão determinada, já que se refere a relações impossíveis de serem tratadas profissionalmente, através de estratégias institucionais/relacionais próprias do próprio desenvolvimento das práticas do Serviço Social” (FALEIROS).

A intervenção judicial é imprescindível num real Estado Democrático de Direito, para garantir os direitos fundamentais (direitos humanos minimamente positivados na norma legal positiva vigente no momento histórico), privilegiada e prevalentemente, num espectro de varias estratégias de proteção de direitos, consagradas em determinados princípios constitucionais (ou normas-principiológicas de hierarquia superior): (1) devido processo legal, (2) presunção de não-culpabilidade, (3) não retroatividade da lei in pejus etc. Princípios constitucionais outros por sua vez criam os chamados remédios judiciais ou ações de garantia processual para assegurar a proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais: (1) Habeas corpus, Mandado de Segurança, mandado de Injunção, Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação por Descumprimento de Preceito Constitucional, Habeas Data etc.

Incumbe ao Sistema de Justiça o importante papel de atuar como intérprete do justo na prática social, passando a exercer com plenitude sua função de concretização do texto constitucional federal brasileiro. Em um verdadeiro Estado democrático de Direito isso é inafastável. Segundo RISTER: “o desenvolvimento objetivo, como um conjunto de metas ou diretrizes traçadas pela Constituição para a ordem econômica, pode ser enquadrado na categoria de interesses difusos em face da conflituosidade que lhe é ínsita na indeterminação dos sujeitos e da indivisibilidade do objeto”, sendo a ação civil pública o instrumento processual mais adequado à sua garantia” (art. 208, parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente) .

Justamente em decorrência disto, as políticas públicas, como um conjunto de atos e normas, orientados finalisticamente à obtenção de determinados resultados” estão sujeitas à aferibilidade de sua compatibilidade com a Constituição quanto aos meios dos quais se utilizam e quanto aos fins a que elas se voltam.

A lei 12.010/2009 promove uma judicialização excessiva no campo das relações sociais? Essa lei federal citada - que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente no tocante ás regras de garantia do direito á convivência familiar e comunitária (mal chamada de “nova lei da adoção”, já que mais ampla) - pode ser tomada como exemplo de como a judicialização da guarda, tutela, adoção, colocação em família substituta, acolhimentos institucional e familiar e outras alterações no estado jurídico da pessoal pode ser um mal e um bem, ao mesmo tempo – por seus avanços e retrocessos. A sua aplicação a partir de interpretações reducionistas ou não fará a diferença, na medida que o Judiciário se convencer ou não de a judicialização prevalente não é o caminho para o deslinde da questão social e dos conflitos estruturais dessa questão, muito mais social e político.

• Estabelece ela, como medida protetiva, a figura do acolhimento familiar, a qual a criança ou o adolescente é encaminhado para os cuidados de uma família acolhedora, que cuidará daquele de forma provisória.

• Determina que crianças e adolescentes que vivam em abrigos (espécies de acolhimento institucional) terão sua situação reavaliada de 06 (seis) em 06 (seis) meses, tendo como prazo de permanência máxima no abrigo de 02 (dois) anos, salvo exceções.

• A família substituta é aquela que acolhe por decisão judicial (adoção, tutela e guarda) uma criança ou adolescente desprovido de família natural (de laços de sangue), de modo que faça parte da mesma.

• Institui duas formas de acolhimento, em caso de perda ou suspensão do poder parental da família natural, antes da colocação em família substituta:o familiar e o institucional (antiga medida de abrigamento ou de abrigo na versão original do Estatuto)

• Também estabelece uma preparação psico-social, de modo a esclarecer sobre o significado de uma adoção e promover a adoção de pessoas que não são normalmente preferidas (mais velhas, com problemas de saúde, indígenas, negras, filhos de trabalhadores do sexo etc.)

• Traz o conceito de família extensa (ou ampliada), em função do qual se deve esgotar as tentativas de a criança ou adolescente ser adotado por parentes próximos com os quais o mesmo convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. Assim, por exemplo, tios, primos, e cunhados têm prioridade na adoção (não podem adotar os avós e irmãos do adotando).

5. PROCESSOS DE CONTRA-HEGEMONIZAÇÃO POLÍTICA E JURÍDICA NO ÂMBITO DOS CONTEXTOS SOCIAL E POLÍTICO-INSTITUCIONAL

As diversas situações de espoliação, subalternização, alienação, exclusão, exploração, discriminação, negligência, violência, opressão, a que estão submetidas as classes trabalhadoras e determinados grupos populacionais vulnerabilizados para a realização dos seus direitos humanos, a partir de uma situação de desvantagem social (em função da raça, etnia, gênero, sexo, morbidade, pobreza extrema, exploração sexual, abandono, exploração no trabalho etc.) ou de conflito com a lei (infração/crime), justificam o quanto suficiente “discriminações positivas” em favor deles, com ações afirmativas que compensem esse quadro desencadeador ou potencializador da dominação das classes capitalistas hegemônicas.

Neste ponto de reflexão, interessa aprofundar a discussão especificamente sobre a contra-hegemonização política e jurídica, em favor dos segmentos populacionais citados. É imprescindível que se creia que o Direito tem um poder transformador maior do que tradicionalmente se atribui a ele, em nosso meio, ainda muito marcado por um "substancialismo jurídico” . Mas, sem cair no ledo engano de que, pela simples e exclusiva ou preponderante judicialização das demandas e dos conflitos sociais, se estaria pondo um ponto final à questão social.

É imprescindível, além do mais, que se creia que as Políticas de Estado têm igualmente poder transformador, talvez menor do que tradicionalmente se atribui, pouco marcado ainda pela idéia de que a formulação e desenvolvimentos dessas políticas estatais fazem parte de um processo sócio-político mais amplo, meta-estatal, onde as pré-definições políticas nascem do próprio povo organizado, com capacidade de incidência sobre essas políticas públicas ou políticas estatais.

Um Direito formulado pelos poderes do Estado é mais amplo e profundo que a Lei que o reflete, mas não o esgota. E, de outro lado, um ainda mais amplo conceito de Direito, que insurja do seio da sociedade, é tão legitimo quanto aquele citado Direito estatal e por conseqüência muito mais que a lei estritamente.

6. MARCOS REFERENCIAIS PARA A FORMULAÇÃO DE UMA POLÍTICA TRANSFORMADORA E EMANCIPADORA, EM FAVOR DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA

social de crianças e adolescentes vulnerabilizados e em risco social, por exemplo. Mas, programas, serviços, ações e atividades não se confundem com políticas, no seu sentido amplo e puro – e sim as integram como partes. Por exemplo: toda e qualquer forma de exploração laboral da criança e do adolescente deverá se prevenida e erradicada (ou proibida e eliminada imediatamente, conforme o caso), através de serviços/atividades e programas/projetos de proteção especial de direitos da política de garantia, promoção, proteção de direitos humanos, articulados e integrados, com programas/projetos e serviços/atividades das políticas de saúde, de educação, de cultura, de assistência social, de proteção no trabalho , de segurança pública, de agricultura, das relações exteriores etc. etc. A erradicação do trabalho infantil no Brasil não é uma questão puramente de assistência social. Mas, o é também.

No passado, depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o governo federal especificamente entregou a coordenação dessa política (institucional e intersetorial) de garantia, promoção, proteção de direitos, à Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência – CBIA, vinculada ao Ministério do Bem Estar Social, que a nomeava como “política de proteção especial”. A vinculação do CBIA ao Ministério do Bem Estar Social, naquela época, tinha certo ranço do "velho regime": um órgão novo, com responsabilidades novas e revisionistas (e que a isso se propunha e que estava alcançando realmente antes de sua extinção...), preso, ainda que formal e institucionalmente, ao modelo assistencial do passado. E, por sua vez, nidificou-se o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, responsável pela formulação e controle dessa política, na Presidência da República (!); reforçando, com isso, a natureza de intersetorialidade ao fazê-lo responsável pela concertação nacional em favor dos direitos fundamentais infanto-adolescentes.

Posteriormente, com a apressada extinção da Fundação CBIA, o CONANDA foi vinculado ao Ministério da Justiça, responsável pela "política de defesa da cidadania". E nesse Ministério de Estado se criou o Departamento da Criança e do Adolescente, na estrutura da Secretaria Nacional da Cidadania, transformada em Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, ficando esse órgão responsável pela coordenação, em nível nacional, dessa política de garantia, promoção e proteção dos direitos humanos da infância/adolescência.

Atualmente, toda a política de direitos humanos foi deslocada, em boa hora, para a Presidência da República, sob a responsabilidade direta de uma Secretaria de Estado (mais estratégica que operacional), em nível de Ministério Extraordinário: Secretaria dos Direitos Humanos (com sua Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente). Essa é uma vitória que não pode ser abandonada.

Nas esferas estaduais e municipais, o nicho institucional dessa política de garantia, promoção e proteção dos direitos humanos (crianças/adolescentes) varia de um lugar para outro. Em uns, está ela nidificada em Secretarias de Ação Social, de Desenvolvimento Social, de Solidariedade Humana, de Assistência Social e até de Educação. Em outros Estados, em Secretarias de Justiça ou de Segurança Pública – algumas poucas. Em outros raros, diretamente vinculadas ao Chefe do Poder Executivo – Casa Civil, Gabinete do Governador. E finalmente no caso do Paraná há uma Secretaria de Estado exclusiva para a área.

A primeira experiência, em determinados governos e em certos momentos, tem levado ao risco de confundir a política de direitos humanos com a política de assistência social, de maneira reducionista, desprezando a ótica da priorização absoluta, da intersetorialidade, da exigibilidade preferencial dos direitos fundamentais. Nesse caso, transforma esta "política de direitos humanos" em um mero ramo especializado da Assistência Social: os conselhos desta última seriam "conselhos de política pública”, enquanto os conselhos dos direitos da criança e do adolescente seriam apenas "conselhos temáticos" (?). Essa distorção pode nos levar aos tempos da "Política do Bem Estar do Menor", em boa hora extinta (Sistema FUNABEM-FEBEM).

A segunda experiência de nidificação em Secretarias da Justiça e Cidadania tem o perigo de fazer repetir modelos do passado (Sistema SAM-SEAM) de triste memória, onde a questão dos "menores abandonados e delinqüentes" era uma questão de segurança e seu atendimento se fazia de maneira assemelhada ao atendimento prisional: as Secretarias de Justiça estaduais, ainda não conseguiram construir uma prática renovada de "defesa da cidadania", apesar do nome mais das vezes e das boas intenções. Seu quadro de pessoal tem razoável competência (e inclusive os vícios também) no trabalho com determinadas linhas tradicionalmente suas: trabalhar na articulação política do Poder Executivo com os Poderes Legislativo e Judiciário, com o Ministério Público, com os Poderes municipais e com a Sociedade (quando isso não perderam para a Casa Civil ou Secretarias de Governo, em alguns Estados), no trabalho de supervisão geral de órgãos como as Ouvidorias Gerais e as Defensorias Públicas (quando não assumem sua autonomia constitucional) e principalmente no trabalho de administração do sistema prisional. Quando não, em determinadas experiências, funcionam em conjunto com a Segurança Pública.

A conjuntura local dirá qual a melhor vinculação administrativa, levando-se em conta uma série imensa de variáveis: de qualquer maneira, a melhor solução está na vinculação a um Ministério, Secretaria estadual ou municipal ou outro órgão público (a) que a reconheça como política autônoma; (b) que a reconheça como política de garantia de direitos humanos e não “política de clientela”; (c) que tenha maior abertura para a inter-setorialidade, com maior capacidade de articulação interinstitucional; e (e) que tenha realmente força política (poder/prestígio).

Tanto as entidades socioeducativas , com seus regimes, programas, serviços e ações específicas destinados aos adolescentes em conflito com a lei, quantos as entidades (idem) de proteção especial ou defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes credores de direitos - ambos são dirigidos a público-alvo e a situações próprias, que os distinguem dos programas de atendimento direto de outras políticas públicas; como, por exemplo, os programas de proteção sócio-assistencial para crianças e adolescentes em situação de risco ou socialmente vulnerabilizados, típicos da política de assistência social.

Os programas, serviços e as ações públicas de proteção especial (defesa) de direitos humanos para crianças e adolescentes se dirigem a todo o segmento infanto-adolescente que tenha seus direitos ameaçados ou violados (art.98 – Estatuto citado) – são eles universais e focalistas, a um só tempo!

Não é uma situação socioeconômica (vulnerabilidade social, carência etc.) que justifica a intervenção estatal através desses programas/serviços/ações, previstos no Estatuto. E sim uma situação jurídica: isto é, o não reconhecimento e não-garantia de mínimos direitos fundamentais (enquanto direitos humanos positivados por um Estado), nas áreas elencadas anteriormente exemplificativamente da educação, da saúde, da assistência social, da cultura, do lazer, do trabalho, do trabalho etc.

O Estatuto discrimina exemplificativamente, nos inciso I a VII do artigo 87 , alguns tipos de programas e serviços socioeducativos (adolescentes em conflito com a lei) e protetivos especiais de direitos humanos (crianças e adolescentes credores de direitos), a serem normalizados, criados e mantidos , no âmbito dessa política de garantia, promoção e proteção de direitos humanos infanto-adolescentes e de outras políticas criadas por outras leis orgânicas e outras normas operacionais básicas federais, estaduais e municipais.

E no artigo 90, o Estatuto fala em “regimes” para a “manutenção por entidades de atendimento”, de “programas de proteção e socioeducativos” (sic), ou no âmbito da política de garantia, promoção e proteção de direitos humanos da criança e do adolescente ou no âmbito de qualquer outra política pública (assistência, social, educação, segurança pública, cultura?), a depender de leis orgânicas e atos administrativos reguladores posteriores:
• Liberdade assistida
• Semiliberdade
• Internação;
• Orientação e apoio sócio-familiar;
• Apoio sócio-educativo em meio aberto;
• Colocação familiar;
• Acolhimento institucional (antigo regime de abrigo)

Numa discutível redação técnico-legislativa, o Estatuto confusamente discriminou esses citados regimes, serviços e programas de maneira tal que se poderia presumir que estava instituindo e criando organicamente serviços e programas de uma política determinada, mal chamada por ele de “política de atendimento de direitos” (sic). Isso se presumiria se estivéssemos fazendo uma mera interpretação gramatical dos seus dispositivos referentes a essa citada política (arts. 86, 87 e 90). Mas, em se fazendo uma devida interpretação sistemática e teleológica dessas normas citadas (como determina o art. 6º do Estatuto) dever-se-á entender que ali naqueles dispositivos examinados se está apenas apontando exemplificativamente áreas de intervenção para essa “política de atendimento de direitos”, ou dito melhor, para essa política de garantia, promoção e proteção dos direitos humanos ou simplesmente política de direitos humanos.

Observe-se que o Estatuto dispõe sobre a “proteção integral de crianças e adolescentes”, como estabelece o seu artigo 1º, formulado com base no permissivo do inciso XV do artigo 24 e no §1º do citado artigo da Constituição Federal que diz competir à União legislar - concorrentemente com os Estados Federados e com o Distrito Federal - através “normas gerais” sobre “proteção da infância e juventude”.

Por sua vez, a Constituição Federal faz distinção entre (a) regular direitos, legislando sobre eles diretamente (artigos 21 e 24 da CF) e (b) regular direitos, indiretamente, legislando sobre diretrizes e bases para a organização de determinadas políticas públicas em sistemas (in ibidem)

A partir desse entendimento, examine-se o artigo 87 e seus incisos e questione-se: o Estatuto estaria realmente criando e organizando aqueles “serviços” mencionados nos seus incisos III a V e aquelas “políticas” mencionadas nos seus incisos I e II? Na verdade, não! As políticas sociais citadas nos incisos I e II já eram pré-existentes e deveriam ser reguladas por leis orgânicas próprias, como foram (LOS, LOAS, LDB etc.). Em verdade, com o citado dispositivo se quer dizer que compete à política especial de “atendimento” (sic) ou promoção de direitos, prevista no artigo 86 do Estatuto incidir sobre tais políticas sociais, para ali, no interior delas – como uma linha estratégica - garantir, promover e proteger os direitos fundamentais de criança e adolescentes. Do mesmo modo: os serviços especificados nos incisos III a V igualmente já pré-existiam no campo de outras políticas e lá encontravam sua nidificação (a localização de desaparecidos, por exemplo, na segurança pública) e ali se queria dizer a mesma coisa dita de relação aos incisos I e II. A política prevista no art.86 do Estatuto na verdade não é propriamente uma política social (assistência, educação, saúde, previdência etc.) com atendimento direto a seus destinatários, de caráter operacional. E sim uma política institucional (semelhante às políticas de segurança pública, de relações exteriores, de segurança pública, por exemplo) de caráter estratégico, transversal, incidindo sobre as demais políticas (todas!), advogando e mobilizando em favor dos direitos fundamentais de todos os cidadãos e/ou de determinados grupos populacionais (crianças, negros, mulheres, segmentos lgbtt, indígenas, pessoas com deficiência etc.).

Com uma posterior formulação e normalização dessa política de (garantia, promoção e proteção) de direitos humanos da criança e do adolescente - tais serviços, programas e ações deveriam ser criados concretamente, ou no bojo dessa política, como forma de atendimento emergencial ou no bojo de qualquer outra política. Nesse último caso, sujeita esta tais políticas à incidência estratégica, pontual, externa da política de (garantia, promoção e proteção) de direitos humanos da criança e do adolescente.

Assim, se normatizou/formulou/planejou, por exemplo, na área da assistência social, onde depois de editada a Lei Orgânica da Assistência Social, posteriormente por atos normativos deliberativos do Conselho Nacional de Assistência Social, foi formulada essa política social básica (Resolução 145/2004) e foi mais instituído e regulamentado o Sistema Único da Assistência Social – SUAS. E de igual maneira se procedeu nas áreas da saúde, da educação, da segurança pública etc.

Os programas e serviços de proteção especial de direitos humanos, de modo geral, são vistos por MESQUITA NETO como "ações que visam prevenir a ocorrência de violações de direitos humanos, direcionadas à população em geral, a grupos de pessoas especialmente vulneráveis a essas violações ou a grupos de pessoas que já foram vítimas dessas agressões. São ações que visam prevenir a ocorrência de violações de direitos humanos antes que elas aconteçam ou atender às vítimas imediatamente após a ocorrência das violações ou no longo prazo que devem ser preservados e fortalecidos." Tal característica deverá ter os serviços e programas de proteção especial dos direitos humanos geracionais.

Esses serviços-programas-ações específicos deveriam ser, em primeira instância, numa primeira linha estratégica (mas não única!), a depender da necessidade conjuntural, como "centros integrados de atendimento inicial" dirigidos à população infanto-adolescente, numa linha preventiva e de atendimento emergencial, precário e encaminhador, funcionando inclusive e principalmente como "retaguarda" para os conselhos tutelares e varas da infância e da juventude (e os órgãos do Ministério Público, da Defensoria Pública). Seus operadores são basicamente "defensores de direitos humanos" , qualquer que seja sua formação acadêmica e profissional. São esses serviços e programas de proteção especial os preferenciais "provedores/portais” da rede de atendimento direto, na ampla ambiência sistêmico-holística do Sistema de Garantia dos Direitos Humanos, ao lado dos conselhos tutelares e dos órgãos do Ministério Público, por exemplo.

Através desses espaços institucionais de defesa de direitos humanos e após um trabalho integrador e preparatório, as crianças e adolescentes, adjetivados de alguma forma por suas circunstâncias de vida poderão ser encaminhados a serviços e programas das políticas sociais básicas e/ou de certas políticas institucionais e econômicas, como "sites" desta "rede" maior de atenção integral à população infanto-adolescente. Nestas características apontadas, certamente estão a essencialidade e o diferencial dos programas e serviços de proteção especial, de relação aos serviços e programas das demais políticas públicas que podem incidir sobre essas crianças e adolescentes credores de direitos, concorrente e superpostamente.

O Estatuto, por ser norma nacional e geral de proteção integral de direitos, pouco detalhou a respeito, apenas rotulando os serviços e programas em questão, deixando, portanto para que leis federais, estaduais e municipais e suas decorrentes normas administrativas regulamentadoras (NOB) os criassem, definindo seu campo de atuação e suas atribuições.

Antecipando-se à formulação da multicitada política de (garantia, promoção e proteção) direitos humanos de crianças e adolescentes, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente , no passado, formulou as diretrizes para o desenvolvimento dos programas socioeducativos destinados a adolescentes declarados pelo sistema de Justiça Juvenil como autores de atos infracionais. E assim, através de uma Resolução sua, aprovou o Sistema Nacional Socio-Educativo – SINASE, a ser obedecida como norma de garantia, promoção e proteção de direitos humanos, quando da sua operacionalização por qualquer outra política pública (assistência social, por exemplo).

Assim sendo, futuramente, após a edição do amplo plano nacional decenal (e/ou genérica norma operacional básica e/ou de lei federal específica) referente à política de garantia (...) de direitos humanos infanto-adolescentes, essas normas específicas do SINASE merecerão obviamente uma revisão. No momento, há que se considerar matéria vencida nesse ponto e se retirar (ou não!) do próprio texto do SINASE muitas lições e evitar desvios, no processo em andamento de formulação da política de garantia, promoção e proteção de direitos humanos de crianças e adolescentes.

Em outra linha estratégica de atuação, a política de garantia, promoção e proteção de direitos humanos da criança e do adolescente (obviamente como o faz a genérica política de direitos humanos de relação a toda a pessoa humana) deve fomentar, facilitar, articular a inclusão de seu público-alvo de credores de direitos, a partir daqueles seus serviços e programas específicos de proteção especial e socioeducativos (primeira linha estratégica, atrás analisados), nos programas e serviços das demais políticas públicas, especialmente das políticas sociais básicas: educação, saúde, assistência social, trabalho, previdência, segurança pública, cultura, desporto etc.

Assim sendo, a política de garantia (...) dos direitos e seu decorrente sistema político-institucional lançam seu público de crianças e adolescentes credores de direitos e de adolescentes em conflito com a lei - ad intra - aos braços dos “cuidadores”, operando nos seus serviços e programas de proteção especial (premial) e de socioeducação (sancionatória).

Entretanto, essa missão da política de garantia (...) de direitos de inclusão privilegiada e acompanhada nos serviços e programas das demais políticas públicas (educação, saúde, assistência social, educação, segurança pública, relações exteriores, trabalho, cultura, planejamento-orçamentação etc.), na prática cotidiana, sofre algumas ambigüidades: algumas vezes, essa política de garantia (...) dos direitos da criança e do adolescente é vista apenas como mera articulação das políticas sociais (garantir acesso à escola, por exemplo), outras vezes, ela é reduzida aos seus programas de proteção especial (abrigo, por exemplo) ou socioeducativos (internação, por exemplo).

O ideal é se assegurar que ela (como toda política em favor de Direitos Humanos) tem como missão última o asseguramento do acesso qualificado de seu público a quaisquer dos serviços e programas de todas as políticas públicas, inclusive das políticas judiciais. E ao mesmo tempo, para isso atingir como ponto-ômega, essa política aqui em foco precisa da institucionalização e manutenção dos seus serviços e programas específicos, quando criados, numa linha nitidamente estratégica.

Assim, a sociedade civil organizada poderia apresentar como áreas estratégicas para a formulação e planejamento da política de garantia, promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente, algumas das inúmeras indicações – por exemplo – contempladas no “Relatório da Sociedade Civil sobre a Situação dos Direitos da Criança e do Adolescente no Brasil” ; tanto referentes especificamente ao Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescentes (por exemplo, “implementação de programas oficiais de proteção a testemunhas e vítimas de crimes contra crianças e adolescentes”, “criação de unidades de internação provisória em espaço físico de das unidades de internação provisória”) , quanto referentes genericamente aos sistemas de educação e de saúde (por exemplo, “investimento em programas de nutrição infantil, com ênfase ma faixa entre 12 e 60 meses”, “fortalecimento do acompanhamento e do controle social da totalidade dos recursos destinados à educação”).

Em ambos os casos, se estaria procurando operacionalizar a política de garantia, promoção, proteção dos direitos humanos da criança e do adolescente, em suas linhas estratégicas de ação, na forma do Estatuto da Criança e do Adolescente, da Convenção sobre os Direitos da Criança e da Constituição Federal.

Em síntese: falar-se hoje em política de (garantia, promoção e proteção) de direitos humanos para a criança e o adolescente tem um novo sentido; acentua a vinculação das suas normas reguladoras e do seu sistema político-institucional de efetivação dessas normas, aos instrumentos e mecanismos, gerais e especiais, internacionais, regionais e nacionais, de garantia, promoção e proteção de direitos humanos.

Significa a assunção de um compromisso maior com a ótica do direito internacional dos direitos humanos e do direito constitucional (direitos fundamentais) brasileiro; afastando a tentação de desvincular o movimento de luta pela emancipação de crianças e adolescentes, do movimento maior pela emancipação dos cidadãos em geral, especialmente dos "dominados", em especial: trabalhadores, empobrecidos, mulheres, negros, população sem-terra e sem-teto, lésbicas e homossexuais, transgêneros, índios, dês-capacitados e pessoas com deficiência, pessoas que vivem com HIV, ciganos, loucos, delinqüentes, nordestinos, quilombolas, ribeirinhos amazônicos, moradores de favelas, segmentos LGBTT etc.

É preciso retirar a criança e o adolescente do nicho de sacralização e idealização e da demonização, no qual, muitas vezes, nosso discurso e nossa prática os entroniza ou condena, para lutar mais concreta e criticamente pela retirada deles, portanto dos círculos do éden ou do inferno a que estão condenados, como anjos glorificados ou como anjos decaídos.

Petrópolis, dezembro, 5, 2010.
Wanderlino Nogueira neto

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