domingo, 9 de outubro de 2011

(2) SEXUALIDADE HUMANA


PROMOÇÃO E DEFESA/PROTEÇÃO DOS DIREITOS SEXUAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES, NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS: GENERALIDADES E CONSENSOS MÍNIMOS[1]

Wanderlino Nogueira Neto Ó


Por que se falar em garantir direitos sexuais e ao mesmo tempo combater todas as formas de violência sexual contra crianças e adolescentes? Na verdade se colocarmos a questão da sexualidade infanto-adolescente na perspectiva dos direitos humanos, como deveremos fazer num verdadeiro Estado Democrático de Direito, ver-se-á que a violência sexual na verdade nada mais é que uma violação de determinados fundamentais da pessoa humana: o direito a uma sexualidade dignidade e livre, qualquer que seja a idade daquele que sofreu um abuso ou exploração sexual.

Assim sendo, uma questão preliminar em torno da qual é preciso consensar-se minimamente diz respeito à expressão (muito usada, às vezes em sentido distorcido) “proteção de crianças ou de adolescentes”. Importante que fique claro que, na perspectiva jus-humanista apontada, no uso dessa expressão deverá estar subentendido o correto sentido de “proteção dos direitos de crianças e adolescentes”. Ela deve ser protegida em especial por sua condição de pessoa em condição social particularmente difícil e ter ao mesmo tempo seus direitos (especialmente os fundamentais) promovidos e defendidos (ou seja, amplamente protegidos jurídico-socialmente)[2]

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, com a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança e com a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, ambos em 1990 – crianças e adolescentes passaram a ser considerados explicitamente como “sujeitos de direitos”, alem da antiga e tradicional característica de “pessoa em condição peculiar de desenvolvimento”.  Assim sendo, não mais se cuida deles ou os protege, apenas atendendo e satisfazendo suas necessidades, desejos e interesses e sim, defendendo (protegendo) seus direitos, ou seja, ressarcindo e restaurando tais direitos quando ameaçados e violados; isto é, amplamente, garantindo seus direitos. Não são, por exemplo, como o mico-leão, a ararinha-azul, os igarapés, a cidade de Ouro Preto, o frevo, as matas ciliares, apenas objetos de tutela, objetos de proteção ou conservação ambiental e cultural. Mais que “objetos tutelados”, são as crianças e os adolescentes “sujeitos protegidos”.

Desse modo, promovendo ou protegendo/defendendo direitos, uma coisa não se faz sem a outra. No campo dos direitos à sexualidade da infância/adolescência e mesmo da juventude há forte tendência de se atuar de maneira preponderante e quase exclusivista na linha da “proteção/defesa de direitos”, numa linha de “enfrentamento”, “combate”,proibição”, “eliminação”, “redução”. Pior ainda: numa linha de proteção tutelar da criança e do adolescente como objetos. Precisamos ser mais afirmativos: só se combate a violência sexual como conseqüência da promoção/defesa dos direitos afetivo-sexuais. Fora daí é “coisificação” da pessoa humana.

Por fim, importante se faz aclara-se a questão terminológica surgida no uso das expressões “violência sexual”, “abuso sexual”, “exploração sexual” e “prostituição infantil”. A primeira, no sentido que se usa hoje, nas políticas públicas, foi construída quando da elaboração do Plano Nacional de Enfretamento da Violência Sexual (Natal). Aí ela foi cunhada para designar toda e qualquer forma de violação dos direitos sexuais de crianças e adolescentes. A palavra “violência” aí transborda do sentido estrito e tradicional do âmbito do Direito. É a expressão-gênero mais ampla da qual se desmembram as expressões-específicas “exploração sexual” e “abuso sexual”. A exploração sexual seria toda forma de abuso contra os direitos sexuais de crianças e adolescentes que tenha um caráter “comercial”, isto é, que vise determinado lucro, ganho, vantagem. O abuso sexual seria mais genérico, isto é, seria toda intervenção abusiva na sexualidade infanto-adolescente, com a característica de imposição, de abuso do poder etário, do poder familiar, do poder de autoridade. Dentro da discussão dessa esfera as estatísticas dão destaque ao abuso sexual doméstico e inter-familiar, colocando no centro a questão do incesto mais comum do que se imagina e do que se gostaria.

E por fim, a expressão “prostituição infantil” seria uma subespécie da espécie “exploração sexual”. Tecnicamente, no Brasil, se deve usar a expressão “prostituição”, quando do ab-uso dos direitos sexuais de pessoas menores de 18 anos, com fins lucrativos, isto é, como forma de exploração da sexualidade para fins de “satisfação da lascívia alheia” (lenocínio, rufianismo etc.). Quando do I Congresso Mundial em Estocolmo (Suécia), promovido pelo UNICEF, ECPAT e Reino da Suécia, definiu-se a “prostituição infantil” (ali prevista no seu documento-base) como uma das formas da exploração sexual, ao lado da “pornografia infantil”, do “tráfico para fins sexuais” e do “turismo sexual”. Essa tradição continuou no II Congresso Mundial (Japão), no III Congresso (Brasil) e no IV Congresso (Bangkoc). A partir daí, deu-se prevalência à expressão mais ampla de “exploração sexual” ou “exploração sexual-comercial”, evitando-se mais das vezes o uso da expressão “prostituição”, com razão ou sem razão. Isso tem algum sentido, politicamente, na formulação de políticas públicas e principalmente no desenvolvimento de estratégias de mobilização social, junto à opinião pública. Mas, juridicamente, a expressão “prostituição infantil” nada tem de incorreta. Nem se venha falar que a criança ou o adolescente não são “prostitutos” e sim “prostituídos”, para afastar o uso da expressão “prostituição”; pois de qualquer maneira há formas de “prostituição” na origem do processo, mesmo sem liberdade – essas crianças e esses adolescentes são objetivamente prostituídos, isto é, há objetivamente prostituição, como forma de exploração comercial da sexualidade. Este é um tipo peculiar de exploração sexual, sempre exploratório, sem que se admita a necessidade de comprovação de que se trata de “prostituição explorada por outrem”, como no caso da prostituição adulta, que em princípio não é crime no Brasil, salvo no caso de exploração comprovada. Em reforço a esse entendimento, é de se lembrar que toda a normativa internacional e toda a legislação nacional vigentes usam essa expressão “prostituição”, quando se referem às crianças e aos adolescentes. O Brasil ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança que diz respeito à “prostituição infantil” e outras formas de violações dos direitos sexuais infanto-adolescentes. Nosso país ratificou ainda mais a Convenção 182 da OIT que trata da “proibição e eliminação imediata das piores formas de trabalho infantil” [3]. E dentre essas lá está explicitamente a “prostituição infantil”.

Dentro dessa linha conclua-se: as expressões diversificadas da sexualidade da criança e do adolescente só podem ter limites na norma jurídica. Tudo permitido a todos, salvo o que a lei proibir ao cidadão. A Constituição Federal estabelece como princípio áureo isso: ora e a criança e o adolescente são ou não cidadãos, pessoas humanas? E nunca limitadas essas expressões da sexualidade infanto-adolescente pelo arbítrio personalista e antijurídico do magistrado e do gestor público. Ou pelos preconceitos morais e sociais de todos nós. Essa intervenção estatal nesse campo da afetividade/sexualidade só será legítima – ética, social e juridicamente - para garantia do direito correspondente, para sua proteção de relação a abusos contra o direito e para a responsabilização dos violadores / abusadores. Garantia da sua liberdade e da sua dignidade, da sua vida e da sua saúde: nunca dos “costumes públicos”, como estúpida e anacronicamente previa a legislação penal brasileira, em boa hora reformada; tudo isso em cumprimento aos novos paradigmas constitucionais que garantem a igualdade de direitos de mulheres, crianças e adolescentes – as maiores vítimas dessa visão machista, adultocêntrica e conservadora da revogada legislação penal brasileira.

O melhor mecanismo para a promoção dos direitos à sexualidade saudável de crianças e adolescentes está no desenvolvimento de ações, atividades, projetos, programas e serviços de todas as políticas públicas, articuladamente em redes de atendimento direto, dentro do amplo e difuso sistema nacional de garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes (Resolução 113-CONANDA).

Desse modo, importante que em primeiro lugar essa questão seja enfrentada por ações estratégicas da política nacional de direitos humanos (SDH-SPDCA e CONANDA, em nível nacional), para garantir o privilegiamento (priorização absoluta) e a articulação política e a integração operacional pontual do atendimento em rede a esse público, por todas as políticas públicas, isto é, pelas políticas públicas sociais (educação, saúde, assistência social, previdência, cultura etc.), institucionais (segurança pública, defesa do estado, planejamento/orçamentação etc.), econômicas (cambial, bancária, fiscal etc.etc.).) e infraestruturantes (turismo, agricultura, indústria, comércio, transporte etc.etc.). O enfrentamento da violência sexual é uma questão multidisciplinar, multiprofissional, inter-setorial e interinstitucional. Um papel especial se deve reservar à política nacional de direitos humanos, diante dessa perspectiva aqui apresentada: compete a ela estrategicamente mobilizar toda a população em favor da garantia dos direitos sexuais de crianças e adolescentes (repudiando-se a naturalização da violência sexual contra mulheres, criança/adolescentes, idosos, jovens, indígenas, afro-descendentes, por exemplo) e compete mais a ela estrategicamente ainda incidir sobre os sistemas de políticas públicas todas e sobre o sistema de Justiça, em favor da priorização e da prevalência absoluta dos direitos fundamentais sexuais de todos os cidadãos, especialmente aqueles que mais sofrem violações de seus direitos por discriminação de gênero, geração, raça, etnia, orientação sexual etc.

Não só o governo ou apenas a sociedade civil organizada podem dar conta isoladamente e desarticuladamente da questão. Nenhuma política pública deve ter o monopólio sobre esse público abusado e explorado sexualmente. Não só com o acesso à Justiça se promove e protege direitos sexuais.

Assim, antes de tudo, ousemos, sem medo! Existem coisas na vida, que o conservadorismo e a falta de ousadia no pensar e no agir, transformam em triste cumplicidade com a discriminação, a exploração, a violência - até mesmo com a morte. E quando se trata da proteção e promoção da liberdade, da dignidade, da integridade, da vida e da sexualidade da pessoa humana, tais covardias tornam-se verdadeiros atentados contra os direitos humanos. Assim, o impossível não há, quando esses interesses vitais da pessoa humana se encontram em jogo: existe apenas o “não-tentado”. E nesses casos, ousar é preciso! Um “ousar” que diz respeito à coragem e à radicalidade. E não à insensatez e à intransigência.  Dentro desse contexto, imprescindível se torna qualificar a satisfação das necessidades básicas de todas as crianças e todos os adolescentes e jovens, na área da afetividade e sexualidade - como promoção e proteção de direitos humanos[4] específicos da infância-adolescência e da juventude. Não mais um favor concedido, benevolamente, por magistrados, promotores, educadores-sociais, médicos, trabalhadores sociais, professores, pelo mundo adulto. Para a construção de tal renovada reflexão e prática social é preciso que se negociem consensos mínimos, nascidos do diálogo e da explicitação honesta dos nossos dissensos saudáveis, dos nossos conflitos pessoais, corporativos e de classe.

NOTAS
[1] Texto publicado em revista no Mato Grosso
[2] Estatuto da Criança e do Adolescente – artigo 87,V.
[3] A Convenção 182-OIT (como alguns equivocadamente interpretaram) não determinou que só se vá erradicar essas “piores” formas de trabalho infantil. A Convenção 138-OIT mais genérica trata da erradicação gradual de toda forma de trabalho infantil. A 182 estrategicamente elege algumas formas mais danosas de trabalho (não “piores”, como na tradução) para um processo de proibição e eliminação imediatas, como formas de erradicação do trabalho mais urgente, emergencial, rigorosa, não-gradual.
[4] Garantia dos Direitos Humanos = (a) promoção da realização do direito, (b) monitoramento e controle dessa realização e (c) proteção desses direitos.


Ó RESUMO DO CURRÍCULO -  O AUTOR é procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do Estado da Bahia e ex-professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal da Bahia. Foi Procurador Geral de Justiça e Diretor Geral do Tribunal de Justiça da Bahia, Secretário Executivo do Fórum Nacional DCA e da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente - ANCED. Foi igualmente Consultor Especial para os Escritórios do UNICEF no Brasil, Paraguai, Cabo Verde e Angola Integra o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro e conseqüentemente a ANCED e a Defense for Children International – DCI. Participou da elaboração do 1º. Relatório Alternativo da Coalizão da Sociedade Civil brasileira ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU (Geneva), participando mais da audiência de discussão no Comitê. Prestou igualmente assessoria à Associação Brasileira dos Magistrados, Promotores e Defensores Públicos da Infância e Juventude – ABMP. Foi consultor para o CONANDA/Unicef na normatização do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Integrou a Coordenação Nacional da PESTRAF / BRASIL – Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais (2002. OEA / CECRIA). Participou de Seminários e estágios na Universidade de Maccerata e Bologna (Itália) e no Centro de Formação para a Proteção Judiciária da Juventude do Ministério da Justiça (Paris – França). Tem vários livros publicados e integrou com artigos e ensaios inúmeras outras publicações coletivas.


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