sábado, 26 de novembro de 2011

PRONUNCIAMENTOS DA ANCED-DCI E DOS SEUS CEDECA.S

MANIFESTO DO CEDECA-RIO (ANCED / DCI) EM DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS AMEAÇADOS E VIOLADOS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES
DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

O RECOLHIMENTO E A CHAMADA INTERNAÇÃO ASSISTENCIAL, AMBOS COMPULSÓRIOS, FORA DAS HIPÓTESES LEGAIS. 
DISTORÇÕES POLÍTICO-INSTITUCIONAIS E INCONSTITUCIONALIDADES/ILEGALIDADES EM FACE PRINCÍPIO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA RESPONSABILIDADE PARENTAL E/OU ESTATAL, DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DA PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

(2011)

 As operações da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, de recolhimento das crianças e adolescentes foram intensificadas com a regulamentação de um Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social ao final de maio do presente ano (Resolução SMAS nº 20 de 27/5/2011). Tais medidas surpreenderam a tantos que há muito tempo se dedicam a refletir, formular e executar ações de promoção e defesa dos direitos de nossas crianças e de implementação de políticas públicas sustentadas no marco legal da saúde/saúde mental, da assistência social e da política para os direitos humanos da infância e adolescência, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, com base em toda uma legislação construída e consolidada a partir dos anos 1990, de forma participativa e democrática.
        Além disso, a Resolução SMAS nº 20 desconsidera previsões legais e regulamentares, tais como:
1.     Lei 10.216 (04/06/2001), que regulamenta a política de saúde mental e prevê, em seu artigo 9º, que “A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários”
2. Provimentos nº 4 (26/04/2010) e nº 9 (17/06/2010), do Conselho Nacional de Justiça, que prevêem, respectivamente, que a atuação do Poder Judiciário deve se limitar ao encaminhamento do usuário de drogas à rede de tratamento, não cabendo determinar tipo de tratamento, duração nem condicionar o fim do processo criminal à constatação de cura ou recuperação e que o atendimento a crianças e adolescentes que usam drogas será multidisciplinar e observará a metodologia de trabalho prevista por aquele Conselho Nacional.
        Na contramão, a SMAS alardeia que no período de 31 de março a 15 de julho procedeu a 19 operações de retirada de moradores de rua (crianças e adultos) em áreas da cidade, acompanhada das polícias civil e militar. Do total de 1194 pessoas recolhidas, 230 são crianças e adolescentes; no caso destes, se supõe de pronto que possam ser autores de ato infracional – e, por isso, são levados à Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente ou a batalhão policial. Com tal procedimento, a Secretaria se distancia de suas funções sócio-assistenciais e atua como uma agência de repressão, prestando-se à segregação e aumentando a apartação social que deveria reduzir.
Assistimos, hoje, na cidade do Rio, a incorporação da metodologia do choque de ordem pela Secretaria Municipal de Assistência Social, que privilegia uma ação de defesa da “ordem pública”, de natureza higienista travestida de assistência social. Com tudo isto, temos a lamentar o apoio e a parceria de autoridades e órgãos ligados à Justiça a tal medida, quando deveriam atuar na garantia de direitos e cobrar dos gestores públicos a efetivação de políticas públicas e serviços intersetoriais de qualidade.
        Não concordamos com uma ação que elege a internação compulsória como tratamento para o uso prejudicial de drogas para os pertencentes das classes populares. Também não estamos de acordo que aqueles que dela fazem uso sejam revitimizados, criminalizados e associados automaticamente a delitos, ao invés de receberem do Estado atenção integral, intersetorial e de qualidade, que permitam desenvolver o conjunto de potencialidades próprias de cada ser social. Recusamo-nos a culpabilizar as famílias como fazem algumas vozes, entendendo que elas precisam receber proteção e atenção integral, conforme preconizado na maioria das políticas públicas. Espanta-nos a iniciativa da Secretaria Municipal de Assistência Social de trazer exclusivamente para o seu âmbito a atenção a estas crianças e adolescentes, observando (ainda no campo estrito da assistência social) que a rede de atendimento municipal não se encontra adequada à tipificação nacional dos serviços sócio-assistenciais, conforme prevê as normas legais referentes à Política Nacional de Assistência Social e ao Sistema Único de Assistência Social (PNAS/SUAS). Reconhecemos que a política de saúde e, nela, a de saúde mental deve ter intervenção prevalente na situação, dispondo de saberes e práticas que podem viabilizar uma adequada assistência a este público, adotando a perspectiva da redução de danos e utilizando-se das bem sucedidas experiências com os consultórios de rua.
      A expansão do uso do crack e de outras drogas baratas disponibilizadas para as classes empobrecidas é um fato complexo, que  requer ações diferentes do recolhimento compulsório de pessoas.  Exige abordagem processual e o estabelecimento de relações de confiança e adesão que, como se sabe, não provocam efeito imediato e midiático. Requer ainda, uma ação multidisciplinar e intersetorial entre a saúde, a assistência social, a educação e a cultura, o esporte e o lazer, e demais políticas.
         Por outro lado, o procedimento em curso não foi apresentado à discussão nos conselhos municipais de assistência social e de defesa dos direitos da criança e do adolescente (CMAS e CMDCA), instâncias formais de controle social e de formulação de políticas. Ignorou a “Política municipal de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua”, objeto da Deliberação 763 de 2009 do CMDCA, órgão colegiado vinculado à própria SMAS. Esta Política foi discutida amplamente por Grupo de Trabalho paritário composto por diferentes secretarias de governo, organizações da sociedade civil e representantes do sistema de garantia de direitos humanos (cfr.Resolução 113 – Conanda) e deixou de ser implementada por seguidas gestões.
           Na verdade, a gestão pública municipal vem negligenciando dos seus deveres constitucionais para com as nossas crianças e adolescentes. Faltam investimentos na rede de saúde mental e de atenção a quem usa e abusa drogas lícitas e ilícitas (álcool, tabaco, maconha, cocaína, “crack” etc.), em acordo com a lei 11.343/2006, nos conselhos tutelares e em outras medidas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, na rede própria de assistência integral e de acolhimento a crianças e adolescentes em situação de rua e a suas famílias, na rede pública de educação e na implementação do “Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas”, conforme estabelecido no Decreto presidencial 7179 de maio de 2010.
         Assim sendo, observando a magnitude do contexto de vulnerabilidade e de violação de direitos de muitas crianças e adolescentes em nossa cidade, os presentes neste Ato Público e signatários deste Manifesto, reclamam do Poder Público, nas pessoas do Sr. Prefeito e secretários de Governo:
- implementação imediata da “Política municipal de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua”, conforme deliberação 763 AS/CMDCA de 2009;
- ampliação e investimento nas estratégias de redução de danos, nos consultórios de rua, na rede de saúde mental infanto-juvenil: Centros de Atenção Psicossocial infantil (CAPSi), Centros de Atenção Psicossocial na área de álcool e drogas (CAPS/ad) e nos leitos em hospitais gerais;
- ampliação do número de conselhos tutelares, com investimentos especialmente na capacitação e treinamento dos conselheiros, na melhoria das condições materiais de trabalho e na qualificação dos serviços prestados;
- implementação do Plano integrado de enfrentamento ao crack e outras drogas (Decreto 7179/2010), implantando Casas de Acolhimento Transitório (CAT) que ofereçam ambiente de proteção social e de cuidado integral em saúde, em articulação com os CAPS/ad;
- promover o imediato reordenamento da rede de atendimento a crianças e adolescentes, em conformidade com a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais- PNAS/SUAS;
 - cessar imediatamente a abordagem a crianças e adolescentes nos moldes aplicados hoje, face à Resolução SMAS nº 20, deixando de proceder a internação compulsória e o encaminhamento de adolescentes, julgados prematuramente em delito, à DPCA. 
                              
                                                          Rio de Janeiro
                                                           Julho de 2011

SISTEMA-GARANTIA-DIREITOS-HUMANOS

A DEFESA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: A EXPERIÊNCIA EMBLEMÁTICA DOS CONSELHOS TUTELARES

Por Wanderlino Nogueira Neto

O presente  texto é um capítulo do livro "Direitos Humanos Geracionais - Formação para o SIPIA" do Autor, editado  pela SDH-PR & CEDCA-CEARÁ (esgotado). Fortaleza. 2003. O referido livro se encontra em fase de revisão para publicação de uma 2ª edição.

A. A ESSÊNCIA DOS CONSELHOS TUTELARES

Generalidades - Nos tempos atuais, talvez sejam os conselhos tutelares os espaços públicos institucionais mais controvertidos, como instrumento de proteção de direitos humanos, dentro no Sistema de Garantia dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente. E, ao mesmo tempo, os mais emblemáticos do “novo regime” dos novos tempos. No fundo, são eles o que de mais original e inovador se criou com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de relação à nossa tradição jurídico-normativa e político-institucional. Caminhos novos a serem trilhados e razão de confusões, ambigüidades, descaminhos, tropeços, surpresas. Com tudo isso, porém, temos muito caminho andado, mas com muito caminho a se andar também. Talvez, ao se refletir sobre a essencialidade desses conselhos tutelares, sobre sua intrínseca natureza, boa luz poder-se-ia lançar sobre esse novo modo de caminhar: sobre as novas estratégias (espaços e mecanismos estratégicos) de proteção dos direitos humanos geracionais e mais especificamente sobre o Sistema de Garantia de Direitos Humanos.

Natureza jurídica dos conselhos tutelares - Os conselhos tutelares são órgãos públicos, instituídos, criados, organizados e com seu funcionamento regulado, por normas legais: o Estatuto da Criança e do Adolescente e leis municipais. São eles órgãos públicos e não instâncias organizativas da sociedade civil: eles integram o Poder Público, a Administração Pública. O fato de serem compostos por agentes públicos, escolhidos pelas comunidades que integram a sociedade, não faz deles “organizações representativas da sociedade” (arts. 204, II e 227, §7° - Constituição Federal), isto é, entidades sociais, organizações não governamentais. Estão eles incumbidos "pela sociedade de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes"; mas, quando o povo investe de poder político-administrativo um determinado operador, ele o está institucionalizando como agente público estatal. Certo ranço antiestatal, a permear ainda o ideário das nossas organizações sociais, leva às vezes a se marcar a máquina do estado como intrinsecamente antidemocrática; propugnando por instâncias não-estatais paralelas alternativas (mas sem capacidade de alteridade...) de relação ao estado. Esquecidos que a verdadeira luta do atual momento histórico é a democratização real do estado, é a ampliação da sua concepção para incluir nela tanto a sociedade política[1]), como a sociedade civil organizada  - uma marcando a outra. Se fossem organizações representativas da sociedade não poderia uma norma estatal, como é a lei, criá-los, organizá-los. A Constituição Federal  (art. 5º, XVII) consagra o princípio da plenitude da liberdade de associação para fins lícitos.  As organizações representativas da sociedade nascem da vontade da própria sociedade, dos seus componentes. Leis, nacional e municipal, devem instituí-los, criá-los e regulá-los. A norma nacional de proteção os institui, dando-lhes atribuições e define parâmetros gerais para que leis municipais os criem, os estruturem, organizem, disponham sobre seu funcionamento e sobre o regime jurídico de seus membros.
Em face disso, o Estatuto citado não poderia ir além do que foi na instituição dos conselhos tutelares.  Essa lei federal em verdade é uma norma nacional de “proteção da infância e da juventude”, como prevista no art. 24, XV da Constituição federal. Compete à União legislar, como fez com o Estatuto, sobre esta matéria concorrentemente com os Estados federados, estando ela limitada à expedição de “normas gerais” (§1° – art. cit.). Por sua vez, normas legais estaduais poderão, em caráter “complementar” (§2° – art. cit.), legislar a respeito dos conselhos tutelares, respeitados os limites estabelecidos no art.30 da Constituição federal, no que diz respeito à competência dos municípios para legislarem.
Em conclusão, em termos práticos:
§     O Estatuto, em princípio, como norma programática de aplicação imediata institucionaliza os conselhos tutelares obrigatoriamente como integrantes de um sistema de garantia dos direitos de crianças e adolescentes, em todo o país.
§     Mas, a regulamentação complementar do seu papel de proteção especial, nos casos de violação/ameaça de direitos, poderá vir contemplada em leis estaduais;
§     Todavia, obrigatoriamente, uma lei municipal, deverá dispor sobre sua criação formal no âmbito de um determinado município, sobre sua estruturação, organização e funcionamento e sobre o regime jurídico de seus membros.
§     A não-criação do conselho tutelar pelo município deverá implicar numa sanção, como impõe o Estatuto (artigo 261): fica vedado o repasse de verbas pelo Estado e pela União para o desenvolvimento de programas na área da infância e da adolescência, nesse município, enquanto essa providência não for cumprida; inclusive ensejando o ajuizamento de competente ação civil pública pelo Ministério Público ou por entidade social que tenha legitimidade processual.

Os conselhos tutelares são órgãos públicos integrantes do Poder  Executivo municipal - Os conselhos tutelares integram o Poder Executivo, uma vez que,  em se tratando de órgãos públicos estatais, forçosamente  terão eles que se inserir em um dos 3 Poderes estatais, independentes e harmônicos, entre si: Legislativo, Executivo ou Judiciário (salvo no caso do Ministério Público, por força de dispositivos expressos da Constituição federal).
Ora, considerando-se sua função de aplicador da lei em casos concretos e sua condição de "órgão não jurisdicional" (Estatuto cit.), aplicando medidas administrativas especiais de proteção a todas as crianças e todos os adolescentes que delas necessitarem – obviamente há que se tê-lo como órgão especial do Poder Executivo. Mais especificamente: órgãos do Poder Executivo municipal.
O Estatuto remete a leis municipais sua criação e regulação. Cai essa normalização no âmbito da competência legislativa do município (art.30 – Constituição federal), para dispor sobre “organização de serviços públicos de interesse local”. Aqui está muitas vezes o calcanhar de Aquiles do funcionamento de alguns conselhos tutelares: a má normalização. Como se trata de exercício de atividade legisferante complementar, os legisladores municipais disso esquecem e acabam abandonando as normas gerais nacionais (ou estaduais, nos raros casos existentes), incluindo disposições que se conflitam com essas normas. Todavia, o mais comum é a lei municipal normalizar de maneira incompleta, deixando de regular alguns pontos básicos da implementação, organização e funcionamento dos conselhos tutelares naquele município. E – mais comum ainda! – deixando de regular o regime jurídico dos conselheiros tutelares.
É imprescindível que, na elaboração das leis municipais referentes aos conselhos tutelares, o poder público municipal (Chefe do Poder Executivo) leve em conta dois pontos de partida fundamentais. O primeiro diz respeito à participação da população especialmente das suas organizações representativas (num sentido amplo, envolvendo também as comunidades, associações, as organizações eclesiais, os sindicatos etc.). O segundo diz respeito à observação das normas legais de hierarquia superior e os parâmetros orientadores estabelecidas pelos conselhos dos direitos da criança e do adolescente (em seus três níveis).
Em conclusão:
a)              Devem as leis municipais dispor livremente sobre criação, estruturação, organização e funcionamento dos conselhos tutelares e sobre o regime jurídico dos conselheiros tutelares;
b)              Devem todavia obedecer aos parâmetros mínimos estabelecidos no (*) Estatuto, (*) nas leis estaduais de proteção à infância e adolescente (caso editadas), (*) nas normas regulamentares específicas do CONANDA[2]  e (*) dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente[3].

Órgãos especiais, funcionalmente autônomos e administrativamente vinculados a um Órgão de Administração Superior do Poder Executivo municipal - Os conselhos tutelares, em face da dogmática jurídica, são órgãos da administração centralizada, sem personalidade jurídica própria [4]. E portanto sem possibilidade, por exemplo, de  possuírem CGC próprio, diverso daquele da entidade estatal. Nos municípios que lhes são concedidos equivocadamente CGC pelos órgãos fazendários federais, são esses conselhos classificados, na Fazenda Nacional, como "associações", isto é, entidades não governamentais, o que implica numa situação ilegal, a merecer urgente reparo, pena de responsabilização (inclusive penal) dos responsáveis pela declaração falsa e conseqüente  situação.
Autonomia administrativa e financeira não têm esses conselhos, aos moldes das entidades da administração descentralizada: o artigo 172 do decreto-lei 200/67 dispõe que  essa se concederá pelo estado, "no grau conveniente, aos serviços aos serviços, institutos e estabelecimentos incumbidos da execução de  atividades de pesquisa ou de ensino ou de caráter industrial, comercial ou agrícola, que por suas peculiaridades de execução e funcionamento exijam tratamento diverso do aplicável aos demais órgãos da administração direta (...)".
Assim sendo, só o reconhecimento, formal e explícito, por lei, de determinados graus de autonomia administrativa e financeira garantirá tal condição a esses colegiados. Nenhuma inferência, em sentido diverso, se poderá fazer a partir do texto do Estatuto, pois onde essa autonomia administrativo-financeira não estiver claramente permitida, proibida está: este, o princípio de direito aplicável à espécie, no campo do Direito Administrativo. O Estatuto não a explicita em nenhum dos seus dispositivos. Quando ele fala em ”autonomia” dos conselhos tutelares, o faz, no sentido da autonomia funcional, como se verá adiante.
Esses conselhos são órgãos públicos administrativos especiais: estão apenas vinculados administrativamente, em linha lateral, a um órgão administrativo superior, de âmbito municipal (Secretaria municipal, por exemplo), que lhes assegura uma "tutela administrativa de apoio institucional": isto é, dotação orçamentária, recursos humanos de apoio e material, equipamento e instalações.
Todavia, são funcionalmente autônomos, isto é, sem qualquer subordinação hierárquica a nenhuma instância administrativa superior. Essa autonomia funcional garante-lhes que de suas decisões deliberativas não cabe recurso administrativo hierárquico para nenhuma instância, qualquer que seja. E sim, controle judicial da legalidade dos seus atos, por provocação de quem tenha legitimidade processual para tanto.
Muitas vezes, se tem observado que juizes e promotores de justiça intervêm indevidamente nos Conselhos Tutelares, como se foram seus "superiores administrativos hierárquicos", desrespeitando a autonomia funcional dos conselhos tutelares, prevista no Estatuto. Prática estranha e perigosa essa, pois se configura numa franca usurpação de poderes, numa intervenção ilegal de um Poder  (Judiciário e Ministério Público, estaduais) sobre outro (Executivo, municipal) Não existe nenhuma linha de subordinação ou vinculação administrativa entre juizes, promotores e delegados de polícia – por exemplo – e os conselheiros tutelares.
Existe sim, o poder do Ministério Público de fazer “recomendações” ao conselho tutelar, nos termos do art. 201, § 5°, "c", do Estatuto – como a qualquer autoridade pública. O conselho tutelar, na esfera da sua autonomia, cumpre ou não a "recomendação público-ministerial". Em não cumprindo, se sujeita a ser pólo passivo de uma ação judicial, ajuizada pelo representante do Ministério Público, se couber – caindo assim na esfera do controle judicial dos atos administrativos.
De relação ao Poder Judiciário, prevê o Estatuto uma única forma de intervenção legal e legítima dele, de relação às deliberações de um conselho tutelar: processualmente, via sentença. Insurgindo-se o Ministério Público ou qualquer interessado (isto é, quem tenha legitimidade processual, como pais ou responsável legal da criança ou adolescente) de relação a uma decisão do conselho tutelar ou de um conselheiro singular, poderão eles ajuizar ações (ação civil pública, mandado de segurança etc.), perante a Vara Infância e da Juventude, para controle judicial (formal) do ato administrativo emanado do conselho tutelar.

Os Conselhos Tutelares são órgãos colegiados e não singulares - Outra peculiaridade que integra sua natureza jurídica, faz do conselho tutelar (como obviamente diz o nome) essencialmente um colegiado. Isto é, um órgão integrado por vários agentes públicos, o que faz com que seus atos administrativos sejam atos jurídicos complexos formais, emanados de uma decisão colegiada e não de um agente singular.
Em situações especiais (situações emergenciais e urgentes ou atos protocolares de representação), sempre previstas na própria lei e no seu regimento ou decorrentes de delegação expressa do plenário colegial, esses atos podem ser praticados pela sua direção ou por qualquer dos seus membros isoladamente  e referendados posteriormente pelo colegiado.
No dia a dia, os conselheiros tutelares atendem separadamente as mais diversas situações de ameaças ou violações de direitos de crianças e adolescentes. Principalmente, quando estão em plantões ou em regime de sobre-aviso. Mas precisa ficar bastante claro o seguinte: seus atos deliberativos (aplicação de medidas, representações ao Ministério Público, encaminhamentos ao Judiciário, requisições, notificações etc. etc.)  só podem ser emanados do colegiado, originalmente ou referendados. Atos decisórios isolados de conselheiros tutelares não têm validade jurídica.

Natureza político-institucional dos conselhos tutelares. Mecanismos politico-institucionais de construção de um novo modelo de gestão pública - A experiência dos conselhos tutelares, no Brasil, se justifica -  política e institucionalmente - como forma de se garantir a
ü    participação popular na gestão do poder, no desenvolvimento dos negócios públicos pelo estado[5].;  e a
ü    desjudicialização da operacionalização das políticas sociais.
Os conselhos tutelares, por sua natureza,  são contenciosos administrativos, criados para assumirem a solução de conflitos pela via administrativa, para aplicarem a lei em casos em concreto. Diz o Estatuto, com má técnica legislativa: "órgãos não jurisdicionais"; como se a declaração de uma condição negativa fosse uma definição de sua natureza, pois não se diz o-que- algo-é, dizendo-se o-que-ele-não-é. Seria o caso de se interpretar a expressão como "órgão contencioso não-jurisdicional",  em função das suas atribuições.
No passado recente, as questões sociais que envolviam crianças e adolescentes, típicas de solução por via de políticas públicas, eram levadas e submetidas ao contencioso judicial, isto é, aos antigos Juízes de Menores – um misto de magistrado, assistente social, prefeito, primeira-dama, “pai e provedor”.
Assim, as confusões maiores sobre a real natureza e missão político-institucional dos conselhos tutelares nascem de um entendimento equivocado sobre o que sejam intervenção judicial e intervenção político-administrativa, isto é, entre prestação jurisdicional (administração de justiça) e gestão dos negócios públicos (desenvolvimento de políticas públicas).

Relações entre conselhos tutelares, estado e democracia:  a marca dominante da participação popular, como essência da experiência desses conselhos - Os conselhos tutelares não são mais, nem menos democráticos que aqueles órgãos públicos constituídos ou através da representação da sociedade por eleição (senadores, governadores, prefeitos, vereadores etc.) ou através da participação direta (conselheiros dos direitos, p. ex.) ou através da investidura legal por nomeações, livres[6] ou via concurso público (secretários de estado, funcionários públicos, juizes, promotores etc.). Os conselhos tutelares são instrumentos do Estado Democrático de Direito como os outros o são. A questão é se saber que entendimento se tem de estado e de democracia, para se entender a natureza político-institucional desses conselhos .

Papel político-administrativo dos conselhos tutelares: a marca dominante da desjudicialização da execução de políticas públicas, como essência da experiência desses conselhos - A partir dessa visão ampliada do Estado Democrático, os espaços públicos de linha participativa, como os conselhos tutelares, do mesmo modo como os conselhos dos direitos da criança e do adolescente (como se verá adiante) devem ser vistos sob dupla perspectiva:
q    organizações burocráticas; e
q    espaços de poder político.

Organizações burocráticas - Os conselhos tutelares precisam se fortalecer, preliminarmente, como "organizações burocráticas". A idéia de "equipamento burocrático estatal" não pode realmente esgotar toda a potencialidade e a riqueza do papel político-institucional de um conselho dessa natureza. Mas, não se a pode desprezar como sem importância nesse trabalho de construção geral desse papel, a fazê-los instrumento efetivo do poder estatal. O asseguramento de condições mínimas de estruturação e funcionamento, dignos para o conselho é condição essencial para a construção do seu papel político-institucional.
Um espaço público institucional, como esse , não sendo eficiente administrativamente, muito dificilmente se tornará eficaz. Isto é, sem bons resultados administrativos, difíceis bons impactos sociais e políticos.
Um conselho tutelar que esteja mal instalado, quanto à sua sede, que não tenha apoio administrativo suficiente e com a devida qualificação, que não tenha equipamentos essenciais atualizados (computador, telefone, fax, copiadora – por exemplo) – obviamente vai ter o seu desempenho bastante comprometido. Não que a falta disso impeça absolutamente o  fortalecimento desses conselhos como "lugares de poder político" -  essas mazelas burocráticas são fatores condicionantes e não rigidamente determinantes.
Na verdade e na prática, tudo isso se torna um autêntico  "círculo vicioso". Pois quanto mais efetivo seu "poder político", mais se fortalece burocraticamente um conselho tutelar. E ao mesmo tempo, quanto mais fortalecido burocraticamente um conselho desses, mais efetivo  deveria se tornar esse seu "poder político". São como duas frentes de luta que se complementam.
O perigo é quando conselheiros tutelares se esquecem do papel político, da missão maior do conselho e se reduzem a uma luta corporativa para criar melhores condições de trabalho para si, colocando a atividade-meio acima da atividade-finalística.
O fortalecimento burocrático dos conselhos tutelares depende visceralmente de que tenham, uma estrutura organizacional pública que lhe dê apoio administrativo. Em sendo órgãos administrativamente vinculados a um órgão da administração superior do município (Gabinete do Prefeito, Secretaria Municipal de Desenvolvimento ou Ação Social, por exemplo) compete a esse órgão de tutela administrativa garantir obrigatoriamente tudo isso: instalações, equipamentos, material permanente, material de consumo, transporte quando necessário, pessoal técnico e de apoio administrativo.
A depender do tamanho do município, da sua população, dos níveis de violação dos direitos de crianças e adolescentes essa estrutura administrativa poderá variar.
Num grande município (Capital, por exemplo) se justifica que o conselho tutelar tenha sua sede, em prédio destinado a ele especificamente, com um número de dependências que permita a instalação de sua secretaria de apoio, de sua sala de reuniões, de gabinetes de atendimento reservado – por exemplo. Justifica-se que o conselho tenha seu veículo próprio, computadores para cada conselheiro, telefone privativo. Justifica-se que tenha servidores de apoio administrativo, colocados especialmente a sua disposição  Ora, qualquer Setor, Secção ou Divisão da máquina pública tem esse mínimo, sem provocar escândalos ou desfalques maiores. Pelo menos, que se trate esse “filho mais moço”, com os mesmos cuidados e privilégios que garante aos seus “irmãos mais velhos”. É só uma questão de vontade política, de se reconhecer que a proteção e garantia dos direitos de crianças e adolescentes é uma prioridade absoluta, como reconhece a Constituição federal.
Mas, em cidades menores, justificável seria que o conselho ocupasse, no mínimo, duas salas de um próprio municipal, que fosse compatível com a dignidade de suas funções e com as necessidades tanto de privacidade, no atendimento do seu público, quanto de proximidade dessa população. O transporte poderia ser compartilhado e requisitado justificadamente para atuação na sua área de competência (território do Município). O telefone se torna muito difícil de compartilhamento diante das peculiaridades e necessidades do conselho, que o precisa como instrumento de trabalho cotidiano e como instrumento de integração ao Sistema de Informação para a Infância e Adolescência – SIPIA (em nível estadual e  nacional). O pessoal administrativo poderá se reduzir a um servidor burocrático ali lotado e a técnicos designado ad hoc, quando se fizer necessário , em cada caso concreto, mediante requisição do conselho ao dirigente municipal competente (assistentes sociais, psicólogos, advogados, pedagogos etc.).
O não atendimento dessas necessidades desse órgão permanente e essencial do chamado "Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes", salvo melhor juízo, justifica (por provocação expressa e formal do conselho tutelar prejudicado) a intervenção do Ministério Público: ou fazendo as recomendações público-ministeriais, ou propondo ajustamentos de conduta ou instaurando inquéritos civis ou ajuizando diretamente ações civis públicas, contra o Poder Público Municipal, na forma da legislação vigente.

Espaço de poder político - Mas, a autoconstrução como "espaço de poder político” deverá ser a grande tarefa, no momento, dos conselhos tutelares, dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente e dos seus membros. Eles têm que se tornar grandes aliados, nessa autoconstrução, um fortalecendo o outro. Estrategicamente, na atual conjuntura, esse é o objetivo mais urgente e importante a ser alcançado, pelo movimento de luta pelos Direitos Humanos de Geração (crianças e  adolescentes) – fazer desses conselhos, reais espaços de poder político! O conselho tutelar, bem como os conselhos dos direitos, não podem ser "mais um órgão burocrático dentre muitos", sempre caudatários, a reboque de outras instâncias da sociedade civil e do governo – meramente, reativos.
Eles precisam, ambos, construir urgentemente sua proatividade, sua participação protagônica nas discussões e nas deliberações a respeito do atendimento (na defesa, um, na promoção o outro) dos direitos de crianças e adolescentes: real e efetivo "espaço político de poder". E tal poder político, eles adquirem, quando se abrem para a sociedade, ouvindo-a e possibilitando a sua participação, a explicitação dos conflitos de interesses entre classes sociais, entre categorias, gerações, gêneros, orientações sexuais, regiões, etnias, raças etc.
Eles devem exercitar seu papel político-administrativo, que faz com este tipo de intervenção o diferencie de um órgão de intervenção judicial. Para tanto os conselhos tutelares precisam se tornar potencializadores estratégicos das políticas públicas em favor da infância e da adolescência, atuando como :
q    aparelhos coercitivos e de integração;
q    instâncias de mediação; e
q    dirimidores de conflitos sociais
E como tal, eles devem exercitar seu papel político-administrativo, que faz com este tipo de intervenção o diferencie de um órgão de intervenção judicial.

Instrumentos de integração e coerção -  A capacidade de integrar operacionalmente, de maneira ampla, os diversos atores sociais, com legitimidade reconhecida é realmente uma importante estratégia potencializadora.
Enquanto os conselhos dos direitos são os grandes articuladores políticos, os conselhos tutelares são os integradores operacionais. O primeiro na normalização e controle da política de promoção dos direitos da criança e do adolescente e o segundo na execução em concreto dessa mesma política, prevista no Estatuto (art. 86).
Quando um direito for violado ou ameaçado, compete ao conselho tutelar aplicar especiais de proteção e isso ele faz requisitando serviços da área da “saúde, educação, segurança, serviço social, trabalho e previdência” (art. 136, III, “a” - Estatuto) – isto é, integrando  operacionalmente esse serviços, como forma de reconhecimento e garantia dos direitos violados ou ameaçados. Quando um conselho tutelar coloca esses serviços públicos como chamada “retaguarda” para o cumprimento das suas decisões protetivas, ele está exatamente dando concretude a esse princípio, fazendo-se agente  integrador  político, realmente efetivo – espaço de poder. Aí está o diferencial para um conselho tutelar.
Mas, para isso, os conselhos tutelares precisam igualmente fazer valer sua coercibilidade, isto é, a capacidade de fazer respeitadas suas deliberações vinculantes, pelo Estado. E isso não é  apenas uma questão técnico-jurídica, é uma questão político-institucional, a ser construída dentro daquela correlação de forças e na conjuntura atual.

Instrumentos de mediação - A segunda estratégia para se construir um conselho tutelar, como "espaço político de poder", é sua transformação em "instância de mediatização".
Obter o "consenso social", a "harmonização” · entre os cidadãos “é aspiração de muitos governantes para alcançar a legitimidade de suas decisões político-administrativas: a busca da almejada” paz social”.  Realmente, se visa – sob o manto desse discurso escamoteador – a neutralização das ações dos movimentos sociais organizados, evitando-se que os interesses das ditas classes subalternas se tornem de alguma maneira hegemônicos. Na verdade, o que se quer proteger não são interesses comuns entre os cidadãos, mas os interesses dos grupos que detém a hegemonia econômica, política e jurídica, numa determinada conjuntura.
"A harmonização pretendida é vista como neutralidade e a neutralidade apresentada como harmonização, mas numa relação de forças em que predominam os interesses do capital, a longo e não raro em curto prazo” ·
Há um sério perigo dos conselhos tutelares se tornarem esse "aparelho funcional", na busca de falsos consensos, escamoteando os conflitos de interesses reais da vida social e tentando essa "harmonização": buscando uma "paz de cemitérios".
De outra parte, como bem alerta DONIZETI LIBERATI[7], há o perigo de cairmos no oposto e vermos nas instituições públicas meramente um "aparelho ideológico do Estado” - instrumento reprodutor de relações sociais, reprodutor do poder que se encontra monoliticamente nas mãos das classes dominantes, a seu serviço exclusivo, de direção, dominação e exploração das classes subalternas.
A partir dessa visão, nenhum sentido realmente tem o funcionamento de um conselho, escolhido pelas comunidades, como o conselho tutelar: as Políticas de Estado seriam os reflexos apenas dos interesses das classes dominantes, não havendo nenhum espaço e possibilidade para a defesa e incorporação dos interesses das classes dominadas.
Mas, há a possibilidade de uma terceira visão do papel de conselhos tutelares, nesse processo: garantia da pluralidade através do respeito à pluralidade e ao dissenso.  Dimensão importante do pluralismo, na concepção de democracia[8], diz respeito à valorização do dissenso.  Já alertava BOBBIO.1986[9] a respeito: "Desde que mantido dentro de certos limites estabelecidos pelas denominadas regras do jogo, (o dissenso) não é destruidor da sociedade, mas solicitador, e uma sociedade em que o dissenso não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer".
Apesar do estado e suas instituições darem prevalência aos interesses dos grupos que detém a hegemonia social, econômica, política e jurídica num determinada conjuntura,  existem todavia algumas brechas nesse poder, algumas "instâncias de mediação", onde se pode fazer a luta pela incorporação de determinados interesses dos mais fracos. A depender de uma certa correlação de forças.
"O Estado mediatiza as relações sociais, segundo  a correlação de forças da sociedade civil. Ou seja, ele não está somente em função dos interesses das classes dominantes, podendo também integrar, aceitar, ou transformar certos interesses das classes dominadas"[10]
Em nosso caso, por exemplo, isso ocorreria com a incorporação e defesa dos interesses da criança e do adolescente, privilegiando o atendimento de seus direitos fundamentais – principalmente enquanto grupo vulnerabilizado, discriminado, violentado, explorado, "credor de direitos".
E isso se faria numa a tentativa de se deflagrar e fortalecer um processo de hegemonização dos interesses dos excluídos, dos mais vulneráveis - da criança e do adolescente (em nosso caso concreto). A ser feito nas brechas do poder hegemônico do bloco dominante (capitalista, racista, androcêntrico-patriarcal, adultocêntrico, homofóbico etc.), com um discurso crítico e uma prática transformadora, na linha da “grande narrativa da transformação social”.
Essa hegemonização não se chocará com a democracia almejada[11], se a colocarmos sem oposições ao paradigma da pluralidade, pois se trata de um falso dilema: é preciso se "construir hegemonia na pluralidade"[12] É preciso se ter espaços públicos, onde a pluralidade de interesses e sujeitos, consolidados através "organizações corporativas",[13] possa negociar a construção da "vontade coletiva majoritária", através de processos democráticos de tomada de decisão.
Os conselhos tutelares podem perfeitamente se apresentar como "instâncias de mediação", pluralistas e hegemonizadoras, em favor dos interesses priorizáveis da infância e da adolescência. Desse modo, esses conselhos têm que se transformar também em “pólos de extensão da cidadania”, orientando a população, fazendo educação para os direitos, num sentido amplo – como se verá adiante, quando se tratar das atribuições legais dos conselhos tutelares.
Só realmente dirigentes políticos com compromisso com a causa da democracia têm interesse no fortalecimento dos conselhos  tutelares, nessa linha; pois os corruptos, autoritários e tecnocratas só podem ver, em colegiados tais, um grande entrave aos seus projetos políticos a ser inviabilizado ou um possível cúmplice a ser manipulado.

ATRIBUIÇÕES DOS CONSELHOS TUTELARES

Generalidades - O conselho tutelar, muitas vezes, trabalha demais, mas atuando fora das suas atribuições, isto é, faz pouco da sua missão específica e muito da missão alheia.
Tratando-se de órgão público, funcionalmente autônomo, de um contencioso administrativo municipal, aplicador de medidas especiais de proteção - o limite de atuação de um conselho tutelar está na lei, como qualquer instância pública institucional.
O Estatuto elenca as atribuições dos conselhos tutelares de maneira clara, dentro de um contexto de rede, integrando um sistema de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, onde as atribuições administrativas de outros órgãos e as competências jurisdicionais estão também claramente explicitadas. Esta é uma marca típica do Estado Democrático de Direito: ao cidadão só vedado fazer o que lhe veda lei e o Estado só é permitido fazer o que lhe permite a lei.
Assim sendo, os conselhos tutelares podem e devem fazer o que o Estatuto e a lei municipal de criação autorizarem. Não podem agir segundo o desejo dos seus integrantes ou dos demais operadores do chamado “sistema de garantia de direitos”. E, principalmente, não podem atuar para suprir ausências, faltas, omissões de outros órgãos, como por exemplo de uma Vara do Poder Judicial, de um órgão do Ministério Público, de uma Delegacia de Polícia, de uma Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (ou homólogas), de entidades governamentais e não governamentais  de proteção especial ou de socioeducação etc. etc..
Os registros do SIPIA demonstram que vários conselhos tutelares estão atuando completamente fora de sua estrada, invadindo as atribuições e atribuições alheias (às vezes de boa-fé, outras por ignorância). 
Tem-se constatado, por exemplo, as seguintes invasões abusivas:
a)              autorizações para crianças e adolescentes viajarem - a competência é exclusiva e indelegável dos juizes,  em todos os casos de viagem, quando se trata de criança e em casos de viagens para o exterior, quando se trata de adolescentes;
b)              acordos extra-judiciais de alimentos, com recepção de valores de pensão -  trata-se de matéria da competência do Ministério Público ou do Poder Judiciário (acordo ou ação, extra-judiciais ou judiciais);
c)              procedimentos de investigação de paternidade - a competência é privativa do Poder Judiciário;
d)              determinações de registro civil das pessoas naturais (nascimento e óbito), através requisições aos Ofícios Judiciais competentes,  quando o Estatuto prevê apenas a requisição de certidão do registro, para instruir procedimento apuratório do Conselho Tutelar - a determinação e a autorização de registro compete a Juiz específico, com competência para controlar os Registros Públicos;
e)              fiscalizações e autuações infracionais de bares, boates, restaurantes, diversões públicas, quanto à freqüência de pessoas menores de idade e quanto à venda de bebidas aos mesmos e as chamadas "blitzs" para apreender meninos em situação de rua  –  compete ao Conselho  Tutelar aplicar medidas de proteção à criança e ao adolescente nessa situação, requisitando medidas responsabilizadoras contra os abusadores, vez que o poder polícia é atribuído por lei aos órgãos de segurança pública, aos órgãos próprios de fiscalização da Prefeitura (concessora do alvará de funcionamento), à Vigilância Sanitária, ao Poder Judiciário (através seus Agentes de Proteção ou Comissários de Vigilância, como a lei estadual de organização judiciária dispuser) , por exemplo;
f)               concessão de guarda, com destituição ou suspensão  do poder parental -   a definição de estado, ou seja, a colocação em família substituta (guarda, tutela e adoção) é da exclusiva competência do Poder Judiciário;
g)              atendimento socioeducativo aos adolescentes em conflito com a lei (ato inflacionar) -  a matéria é da competência dos órgãos de Segurança Pública, do Ministério Público e do Poder Judiciário
As aberrações pululam, como se vê. Mas, de outra parte, o cumprimento de sua missão legal institucional tem produzido intervenções referenciais e exemplares de conselhos tutelares, no país. Intervenções salutares no sentido de fazerem reconhecidos e garantidos  direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Isso de bom porém só acontece, quando os conselhos tutelares se submetem às leis vigentes e exercem suas atribuições próprias fielmente: elas já são muitas e importantes.
Em face disso, necessário se torna imperiosamente que os conselhos tutelares conheçam suas atribuições e as exerçam. Mister se faz que os conselheiros tutelares procurem cada vez se aprofundar no estudo dessas suas atribuições, uma por uma, avaliando o alcance e as conseqüências delas.
Um órgão incumbido de zelar pelo cumprimento dos direitos não poderá ser nunca um órgão que margeie a expressão mais nítida do direito, que é a lei. Por melhor que seja sua intenção, um conselheiro tutelar não pode se considerar acima da lei.

A potencialização estratégica -  O Conselho Tutelar deve fomentar a valorização e a qualificação das ações de políticas públicas e deve lutar pela extensão da cidadania de crianças e adolescentes que atenderem.
As leis municipais de criação dos Conselhos Tutelares podem (e devem!) atribuir a esses colegiados certas funções que chamaríamos de atividades de potencialização estratégica,  a se manifestarem em duas linhas:
ü    valorização e qualificação das ações de políticas públicas;
ü    extensão da cidadania do seu público alvo (empowerment).

A valorização e qualificação estratégica  tem características próprias e está fora do campo do poder deliberativo e coercitivo do conselho tutelar - A chamada  valorização e qualificação estratégica de políticas públicas implica em se construir e desenvolver estratégias políticas consagradas pelas Ciências Sociais: mobilização social, defesa política de interesses (advocacy), empoderamento do usuário (empowerment), parcerização etc.
Assim sendo, importante que essas leis municipais, que estabelecem normas especiais (complementares de relação às normas gerais do Estatuto), criem atribuições para o conselho tutelar que contemplem essas linhas estratégicas, fazendo-o, também potencializador estratégico de políticas, valorizando e qualificando essas políticas, na forma que a lei municipal dispuser, amplamente.
Como tal, o conselho tutelar atua para deflagrar um processo de reordenamento normativo, de reordenamento institucional e de melhoria da atenção direta à criança e ao adolescente (cfr. GOMES DA COSTA, Antonio Carlos).
Ele se preocupa, por exemplo, em levantar dados, informações e argumentos que tenham validade nos processos de elaboração legislativa, fornecendo esses subsídios ao Poder Executivo nos momentos próprios (sanção-promulgação) ou diretamente ao Poder Legislativo.
Ele fornece esses mesmos subsídios, de outro lado, ao Ministério Público, para que promova suas recomendações, acordos de conduta, inquéritos civis e ações civis públicas (ou mandados de segurança).
Ou por fim, pode remeter esse mesmo material - tudo conforme a situação levantada – aos conselhos dos direitos da criança e do adolescente (nacional, estadual e municipal) para o desempenho de suas atribuições normalizadoras/formuladoras e controladoras.

A extensão da cidadania tem também suas características próprias, fazendo com o conselho tutelar fomente a participação proativa (ou protagônica) do seu público - Como extensor da cidadania, os conselhos tutelares, nos limites de sua possibilidade, devem procurar atender e aconselhar  crianças, adolescentes, pais e responsáveis, a respeito de seus direitos e deveres. (art. 136, I e II – Estatuto). Nessa linha ele atua como um verdadeiro “balcão-da-cidadania”.
Numa fase preliminar, preventiva, assim procederá o conselho tutelar, mesmo quando não se justificar uma intervenção mais forte e efetiva sua, isto é, mesmo quando não for o caso da aplicação de medida especial de proteção, ou de representação ao Ministério Público ou de encaminhamento ao Poder Judiciário.
Ele deverá fazer o papel de co-construtor da cidadania do seu público- alvo, de extensor da cidadania: cidadão todos o somos, o que ocorre é o que o exercício dessa cidadania precisa ser ampliado, aprofundado, radicalizado, estendido, quando se trata de determinados segmentos da população (índios, negros, mulheres, crianças, jovens, sem-terra e sem-teto, homossexuais etc.).
E aí entra o conselho tutelar estrategicamente promovendo o empowerment (participação proativa ou protagônica) de crianças, adolescentes e de suas famílias, que atender de alguma forma.

Tipos de atividades  - No exercício dessas atribuições o conselho tutelar estará zelando pelo atendimento dos direitos de crianças e adolescentes (art. 131 – Estatuto), de maneira bem concreta.
São típicas atividades desse tipo ação potencializadora estratégica:
§     palestras, conferências, debates em escolas, associações comunitárias etc.
§     participação em programas radiofônicos ou televisivos;
§     participação em campanhas de social-marketing (distribuição de folders, cartazes etc.);
§     participação em eventos públicos, reuniões de instâncias de articulação (fóruns, frentes etc.);
§     help desk para orientação inicial, por telefone ou pessoalmente, de pessoas que tenham dúvidas a respeito de direitos e deveres de crianças, adolescentes, seus pais e responsáveis
§     etc.
O cuidado maior nessa linha deve ser evitar que o conselho tutelar invada, sob essa justificativa ampla, as atribuições dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, das câmaras de vereadores, dos órgãos de coordenação e execução de políticas sociais (secretarias da assistência,  social, da educação, da saúde etc.), do ministério público, do poder judiciário, dos órgãos policiais – como está sendo freqüente acontecer.
Ou que as atividades do conselho tutelar se reduzam a isso: não exerça ele suas demais atividades, resumindo-se a esse papel potencializador estratégico – mobilizador e capacitador, principalmente.

A proteção de crianças e adolescentes com direitos ameaçados ou violados é a atividade mais importante de um conselho tutelar e se manifesta com a aplicação de medidas especiais de proteção, previstas no Estatuto  - Aqui está a mais importante e efetiva das atividades de um conselho tutelar, isto é, quando ele presta proteção especial a crianças e adolescentes credores de direito, isto é, com seus direitos ameaçados ou violados, quando ele luta pelo reconhecimento e pela garantia desses direitos.
um conselho tutelar que não aplique medidas especiais de proteção não tem funcionamento efetivo, como o Estatuto propõe. Pode praticar inúmeras outras atividades importantes, mas sem a prática dessa, ele deixa de cumprir sua missão maior.

Natureza das medidas especiais de proteção: são atos decisórios e requisitórios, emanados de um contencioso administrativo, que dependem de execução pelos serviços e programas públicos (nas áreas de educação, saúde, assistência social, trabalho, segurança pública etc.) - muitas vezes, certos operadores do aqui estudado Sistema de Proteção dos Direitos Humanos da Criança e do Adolescente (juizes, promotores, delegados de polícia, defensores públicos, dirigentes de órgãos públicos e de organizações representativas da sociedade etc.) e mesmo o público, em geral, imaginam que, quando o conselho tutelar atua, ele na verdade está na obrigação de  “proteger” crianças e adolescentes, diretamente – o conselho tutelar se confundiria com um órgão de execução das políticas de assistência social (mais vezes!), de saúde, de educação, de proteção no trabalho, de segurança pública etc.
Os conselhos tutelares estariam pois a disposição dos juizes, promotores e outras autoridades públicas para darem execução a decisões desses. Como se esses colegiados não tivessem competência originária para apreciar uma situação de violação ou ameaça de direitos e aplicar uma medida jurídica de reconhecimento e garantia de direitos. em verdade, é isso que o estatuto prevê para os conselhos tutelares: um contencioso administrativo, um órgão não jurisdicional de solução de conflitos de interesses.
Na verdade, o conselho tutelar não executa nenhum programa ou serviço público. ele requisita esse atendimento ao órgão próprio do poder público. Os mais consagrados comentarista do Estatuto reconhecem que o conselho tutelar foi criado para exercer antigas funções do juiz de menores e não para serem órgãos de execução, serviço de retaguarda, para outros órgãos.
A leitura do art.136 do Estatuto seria suficiente para confirmar esse entendimento: ali estão as atribuições típicas do conselho tutelar. O Estatuto em nenhum momento o faz executor de programa ou serviço, o faz órgão de atendimento direto.
Aliás, só excepcionalmente  o Estatuto faz algo semelhante, quando no inciso VI do artigo 136, atipicamente, lhe comete a função de “providenciar medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas nos artigos 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional”. De qualquer maneira, mesmo aí, ele não executa a medida aplicada pelo juiz, ele intermedia, ele ratifica a decisão judicial e toma as providências cabíveis (requisição de serviços, por exemplo). O Estatuto explicita bem essa hipótese de ratificação da decisão judicial em caso de adolescentes em conflito com a lei.. Assim,  não há que se falar em conselho tutelar exercendo aí funções assemelhadas a de “equipe multiprofissional” ou de “agente de proteção” das varas da infância e da juventude, como abusivamente isso está acontecendo.
Essas distorções, tanto partem de alguns juizes, que na falta de apoio técnico no campo próprio do Poder Judiciário (como o Estatuto determina nos seus artigos 150 e 151) usam dos serviços, distorcidamente, dos conselhos tutelares, quanto elas partem de alguns conselheiros tutelares que, para fugirem do pouco caso ou da oposição de determinados prefeitos, abdicam de sua autonomia funcional.
Reforçando esse entendimento, é de se lembrar que o Estatuto prevê no seu art. 262 que “enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela autoridade judiciária” – isso mostra a semelhança (não igualdade) de funções entre o contencioso judicial (vara da infância e da juventude) e o contencioso administrativo (conselho tutelar), sem nenhum traço de subordinação de um ao outro.

Conteúdo: proteção, como medida premial - As medidas especiais de proteção, aplicadas a crianças e adolescentes com seus direitos violados ou ameaçados (art.136, comb. com art.98 – Estatuto cit.), têm natureza eminentemente premial. E nunca sancionatórias, punitivas.
Nesse sentido, ensina L. XAVIER DE CASTRO (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado" – artigo 99"- Ed. Malheiros), referindo-se às medidas de proteção especial, aplicáveis pelo conselho tutelar: "Estes instrumentos não poderão ser compreendidos como castigo ou pena; nem tampouco, ter o caráter de 'aliviar' a responsabilidade jurídica daqueles que estão causando danos à criança e ao adolescente".
Por exemplo, não existe nenhum respaldo legal para um conselho tutelar apreender crianças e adolescentes, colocá-las em celas, coagi-las a praticar nenhum ato, destituir o poder parental dos seus pais etc. etc.
A medida de advertência, por exemplo, não existe para ser aplicada pelo conselho tutelar a crianças e adolescentes, a título de medida e proteção. Ela existe como medida socioeducativa aplicada por juiz a adolescente infrator. E como medida responsabilizadora aplicada pelo conselho tutelar a pais e responsáveis. A juÍza CONCEIÇÃO MOUSNIER ((in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado" – artigo 101"- Ed. Malheiros), apesar de não concordar com a limitação do Estatuto, nesse ponto, reconhece claramente: "Andou bem a lei em não estender à criança infratora, menor de 12 anos, com pouca idade, as medidas mais severas previstas nos incs. II a VI do art. 112. Quanto à medida de advertência porém o legislador, melhor agiria, se a tivesse prescrito também para a criança infratora". Traduzindo: mesmo os que advogam a advertência como medida especial de proteção, reconhecem que o Estatuto não a prevê e por tanto vedada está sua aplicação.
As medidas de proteção espacial, previstas no Estatuto, no art. 101, são “benefícios” concedidos a pessoas em condições peculiares de desenvolvimento e não “seres inferiores”, fracos, vítimas, desajustados.
Mas, nossa cultura popular e mesmo institucional está indelevelmente marcada pela concepção autoritária e patriarcalista de que se protege um mais fraco... “castigando”, infligindo sofrimento, ou pelo menos vitimizando.

O público alvo do conselho tutelar é composto por todas as crianças e adolescentes que estejam na situação de "credores de direito", isto é, que tenham quaisquer de seus direitos ameaçados ou violados e não as crianças e os adolescentes em situação de risco, isto é, vulnerabilizados sociais - Um verdadeiro mito se criou, com o passar dos tempos, de que a política de promoção dos direitos, prevista no Estatuto, tinha como seu público-alvo, "crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social". Mais especificamente: aventou-se que as medidas especiais de proteção deveriam ser aplicadas a crianças e adolescentes nessa situação de vulnerabilidade social.
O Estatuto não pode ser invocando para justificar essa interpretação do Estatuto e essa abrangência da política de promoção dos direitos.  Em nenhum dispositivo dessa lei se utiliza tal expressão ("situação de risco"). E o seu art. 98 é claríssimo em determinar que tais medidas são "aplicáveis a crianças e adolescentes sempre que os direitos previstos nesta lei forem ameaçados ou violados (...) por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, (...) por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável (...) em razão de sua conduta".
As situações de vulnerabilidade social (situações de risco) são típicas da política de assistência social, isto é, justificam a intervenção assistencial, através dos seus dos seus benefícios e das suas ações continuadas, próprios.
Ensina WANDA ENGEL (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado – artigo 98" – Ed. Malheiros) a respeito da universalidade dessa política de garantia dos direitos, apontando um primeiro segmento: "Seriam, pois, sujeitos-alvos das medidas de proteção todas as crianças que, por omissão destes dos agentes (sociedade e Estado), tivessem aqueles direitos ameaçados ou violados. Crianças e jovens com a saúde ou a própria vida ameaçadas pelas condições de pobreza, desnutrição e insalubridade ambiental, sem acesso a uma assistência médica de qualidade; fora da escola ou submetidos a um processo educacional que os leva ao fracasso escolar, à estigmatização e à exclusão, inseridos num trabalho que os explora e afastado convívio familiar e comunitário, da escola e do lazer."
E explica mais a autora, apontando outro segmento: "Comporiam esse conjunto, por um lado, crianças e adolescentes vítimas históricas de políticas econômicas concentradoras de renda e de políticas sociais incompetentes em sua tarefa de assegurar a todos os cidadãos seus direitos sociais básicos. (...) Estariam neste grupo também, por outro lado, crianças cujas famílias se omitem do dever de assisti-las e educá-las, praticam maus-tratos, opressão ou abuso sexual ou simplesmente as abandonam."
Finalmente ENGELS descreve o terceiro segmento do público alvo para as medidas especiais de proteção: "Surge, porém, na letra da lei, entre os responsáveis pela ameaça dos direitos da criança, um terceiro agente – ela própria, em função de sua conduta. Reconhece a legislação que a criança e o adolescente, em função de uma dada conduta – crime ou contravenção – reconhecida como ato infracional, possam vir a ter direitos ameaçados ou violados".
Só como exemplo: imagine-se uma adolescente de 17 anos submetida à exploração sexual comercial, isto é, vítima em um crime de lenocínio. Além da óbvia responsabilização/punição do lenão (nos termos do Código Penal), isto é, do seu explorador, a ela se deve garantir imprescindivelmente uma atenção especial, articulada e integrada, das políticas públicas – punição de explorador não substitui a proteção da explorada.
A área da assistência social deveria assegurar a ela (a depender da idade) sua inclusão em programas de renda-mínima familiar, de geração de emprego, ocupação e renda etc. Enquanto isso, a área dos direitos humanos (garantia de direitos) se incumbiria de dar  retaguarda às decisões dos juizes da infância e da juventude e dos conselhos tutelares, ou seja, de dar cumprimento, por seus serviços e programas específicos, às medidas daquelas autoridades.
O Estatuto elenca uma série de programas e serviços típicos da política de promoção dos direitos humanos, nos seus artigos 90 e 87, III, IV e V, que poderiam, em princípio, atender essa adolescente explorada sexualmente – principalmente o programa de apoio socioeducativo em meio aberto (não confundir com medida socioeducativa  em meio aberto, isto é, liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade!), serviços de proteção jurídico-social, serviços de apoio médico e psico-social.
Dentro dessa linha, no país, temos equipamentos com trabalhos emblemáticos: Casa Renascer (Natal – RN), Casa de Passagem e SOS-CORPO (Recife – PE), Centro Projeto Axé – Moda Axé e Fundação Cidade Mãe – Casa de Oxum, CEDECA Yves De Roussan (Salvador – BA), CRAMI (Campinas – SP), CEDECA EMAÚS (Belém – PA)  etc.
Essa adolescente, tanto é uma pessoa em situação em situação de risco social  e pessoal, quanto uma pessoa credora de direitos (= com direitos violados). E assim necessita, como um direito seu e dever do Estado, de atendimento cumulativo, articulado e integrado das várias políticas  públicas, tanto as institucionais (direitos humanos, segurança pública etc.), quanto as sociais (assistência social, saúde, educação, cultura etc.).
Tanto assim é que, por exemplo, o conselho tutelar, como um equipamento-chave do chamado “sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente”, quando atende essa menina explorada na prostituição, aplica-lhe medida de proteção especial, requisitando, para tanto, serviços públicos que integrem o amplo leque da proteção social, que se faz necessária, com atendimentos variados e cumulativos nas "áreas da saúde, da educação, do serviço social, trabalho, segurança pública" (art. 136, III, letra "a" – Estatuto). E culminando tudo isso, como forma de garantir a priorização e integração desse atendimento multisetorial, requisita a inclusão dessa adolescente em programa previsto no inciso II do artigo 90 e em serviço previsto no inciso IV do art. 87, ambos do Estatuto – serviço e programa, específicos, que poderão, em alguns locais, serem desenvolvidos pelo SOS-CRIANÇA.

O conselho tutelar é responsável também pela aplicação de medidas especiais de proteção a crianças em conflito com a lei, já que elas não são responsáveis por seus atos infracionais, nem recebem medidas socioeducativas -  O Estatuto da Criança e do Adolescente só reconhece como responsável pela prática de crimes e contravenções penais (a que chama infrações) o adolescente, isto é, aqueles com 12 anos completos. E assim sendo, só os adolescentes podem ser responsabilizados e sancionados pela prática de crimes e contravenções, como autores de ato infracionais, aos quais o juiz competente aplicará uma Medida Socioeducativa (internação, semiliberdade, liberdade assistida etc.).
As crianças (menores de 12 anos) não são submetidas ao juiz da infância e da juventude, para o procedimento de ato infracional previsto no Estatuto, nem receberão nunca uma medida socioeducativa (nem advertência!). elas deverão ser atendidas pelo conselho tutelar, que lhes aplicará medidas especiais de proteção,  previstas no art. 136 do Estatuto.

O conselho tutelar tem uma participação bastante limitada no processo judicial de apuração de ato infracional atribuído a adolescente, não sendo competente para apurar os fatos nem aplicar medidas socioeducativas - O conselho tutelar só participa secundariamente do procedimento judicial de apuração do ato infracional atribuído a adolescente: quando o juiz da causa, constatando que o adolescente, além de se imputar a ele a prática de um ato infracional, igualmente tem qualquer dos seus direitos ameaçados ou violados e se encontra também enquadrado nas hipóteses do art. 98 do Estatuto. Isto é, quando o juiz reconhece que esse adolescente necessita igualmente ou de apoio e orientação familiar, ou de apoio médico e psico-social, ou de tratamento médico hospitalar ou ambulatorial, ou matrícula escolar etc. etc. (art. 101 – Estatuto citado). Nesse caso, o artigo 136, VI do Estatuto estabelece que cabe ao juiz aplicar também uma medida de proteção e determinar que o conselho tutelar competente atue: "providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI para o adolescente autor de ato infracional".
O conselho tutelar aí está dando execução a uma decisão do juiz da infância e da juventude, uma vez que esse colegiado não tem competência alguma para intervir na apuração de ato infracional atribuído a adolescente - matéria judicial processual.
Duas questões estão todavia surgindo na prática, ao arrepio da lei e que merecem se provoque uma discussão jurídica em torno delas:
 a) Existem conselhos tutelares usurpando a função judicante, apurando a prática de atos infracionais, que se configuram como crime ou contravenção, quando praticados por adolescentes, inclusive aplicando advertência. Quando no SIPIA se pede o registro da prática de atos infracionais por adolescentes quer apenas que se registre que o conselho tutelar recebeu notícia do crime (infração) e a remeteu de imediato ao representante do Ministério Público e/ou juiz. Além do mais um conselho tutelar pode também acompanhar o acautelamento do adolescente apreendido em flagrante na Delegacia de Polícia para evitar que sofra torturas ou coisas semelhantes. Nunca substituir o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz da infância e da juventude, na apuração de ato infracional e no seu sancionamento!
b) Alguns magistrados estão aplicando medida de abrigo em entidade a adolescentes aos quais se atribui a prática de ato infracional (em processo), depois de esgotado o prazo de 45 dias  da internação provisória. Ou a aplica ao final do processo, quando ele aplica medida socioeducativa em meio aberto, substituindo assim o atendimento assistencial ao egresso previsto no Estatuto, mas de outra natureza. O Estatuto expressamente proíbe isso, ao prever que no caso do artigo 136, VI só as medidas previstas nos incisos I a VI do artigo 101 são aplicáveis nessa hipótese, isto é, o Estatuto exclui as medidas dos incisos VII e VIII ("abrigo em entidade" e "colocação familiar").

O sancionamento administrativo de pais e responsáveis - O Estatuto prevê também que o Conselho Tutelar é competente para aplicar medidas responsabilizadoras, de caráter orientador e sancionador, a pais e responsável por infrações às normas do Estatuto. Nesse rol está, por exemplo, a advertência.
Não se tratando de medida premial, de benefício protetivo, mas sim de verdadeira sanção administrativa, entendo, salvo melhor juízo, que não pode o Conselho Tutelar aplicar qualquer dessas medidas a pais e responsáveis, sem respeitar o disposto na Constituição federal, no tocante à garantia da ampla defesa e do contraditório: trata-se de um litígio, de um possível conflito de interesses dos pais ou responsável e da criança ou adolescente.

"Se esses pais simplesmente resolverem não acatar a decisão do Conselho Tutelar eles estarão sujeitos a multa por infração administrativa pelo artigo 249 do Estatuto : 'Descumprir, dolosa ou culposamente os deveres inerentes ao pátrio poder ou de correntes da guarda ou tutela, bem assim determinação da autoridade judiciária ou do conselho tutelar. Pena: multa de 3 a 20 salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência'" – assim ensinam, a respeito dessas medidas, DONIZETI e CYRINO (obra citada). E com isso mais alicerça o entendimento de que essas medidas, aplicáveis a pais e responsável não têm a mesma natureza  puramente premial das medidas especiais de proteção, aplicáveis a crianças e adolescentes.

Assessoramento ao poder público, no campo da orçamentação - Os conselhos tutelares devem anualmente apresentar ao prefeito subsídios (dados, informações e análises) para a elaboração da proposta orçamentária do município; advogando a alocação de recursos para a criação ou manutenção/fortalecimento de serviços e programas específicos para atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, especialmente os previstos no Estatuto (arts. 87, III a V e 90).
Esse oferecimento de subsídios deve ser feito numa linha de assessoramento, isto é, numa linha consultiva, sem poder vinculante.
Raramente, nos relatórios para o SIPIA, encontra-se o registro de que o conselho tutelar tenha cumprido essa sua obrigação legal. Mais das vezes os conselheiros muito se queixam da falta da chamada “retaguarda” para atender suas requisições, isto é, de serviços e programas nas “áreas da saúde, educação, trabalho, serviço social, previdência e segurança pública” para atenderem os direitos violados e ameaçados de crianças e adolescentes. Mas, um gesto concreto construtivo na busca da solução seria tornar a orçamentação pública mais participativa. E esse assessoramento dos conselhos tutelares seria um bom instrumento nesse sentido. É importante pois, que os conselheiros tutelares se capacitem para exercerem regular e sistematicamente essa função no seu município.

FUNÇÕES EXECUTÓRIAS

O conselho tutelar não executa diretamente suas medidas especiais de proteção ou as medidas aplicáveis a pais e responsável – Eles promovem, indicam, determinam que suas decisões devem ser obrigatoriamente  pelas entidades governamentais e não governamentais que prestam serviços ou desenvolvam programas/projetos de atendimento dos direitos de crianças e adolescente. Para promover a execução de suas deliberações colegiadas, o conselho tutelar tem o poder de:
(a)            requisitar, formalmente, por escrito, serviços públicos nas áreas da saúde, educação, serviço social (assistência social), previdência, trabalho e segurança pública;
(b)            representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações, solicitando as necessárias providências para garantir a executoriedade da sua deliberação desrespeitada.
Ainda para garantir a possibilidade de aplicar medidas especiais de proteção, o conselho tutelar, durante o procedimento apuratório da situação de violação ou ameaça de direito, poderá expedir notificações dirigidas a determinadas pessoas para prestarem declarações, expedir requisições de documentos

O conselho tutelar remete um caso ao juiz da infância e da juventude inicialmente, quando a matéria  não é da competência do colegiado -  DONIZETI e CYRINO (obra multicitada) ensinam com clareza: "(...) todos os casos que envolvam questões litigiosas, contraditórias, contenciosas, de conflito de interesses, com a destituição do pátrio poder, como a guarda, a tutela, a adoção e as enumeradas nos artigos 148 e 149 do Estatuto, ao chegarem ao conhecimento do Conselho Tutelar, deverão ser encaminhadas à Justiça da Infância e da Juventude onde os interessados terão orientação certa da solução da solução de seus problemas".
Muitas vezes, um conselheiro tutelar decide intervir em certos casos que são da estrita competência do Poder Judiciário, pensando que está "ajudando" a população. Mas, sua intervenção, mesmo de boa-fé, poderá ter efeitos desastrosos, criando uma falsa expectativa na população e a frustrando de relação ao conselho tutelar. Se a questão não diz respeito a sua esfera de atribuição, nada tem o conselheiro tutelar de ser "porta-voz" do juiz ou "assessor jurídico" de quem o procura, por exemplo, para resolver questões de investigação de paternidade, guarda de filhos, partilha de bens, alimentos, prática de crimes etc. etc.

O conselho tutelar encaminha um caso ao juiz da infância e da juventude igualmente quando sua decisão for descumprida pelo dirigente do órgão público ao qual se dirigiu uma requisição do colegiado - Essa matéria já foi analisada atrás em item anterior, como forma de garantir o cumprimento de suas decisões.
                                          
A remessa do caso ao promotor de justiça (Ministério Público) não pode ser injustificada e como uma forma do conselho tutelar se desobrigar do cumprimento de sua missão institucional, mas sim quando for obrigado por lei a fazer uma determinada comunicação ou representação formal a esse órgão público-ministerial – O conselho tutelar está obrigado a comunicar - oficialmente, de imediato, por escrito e  justificativamente - ao promotor da infância e da juventude local (ou àquele que responda pela função, caso ausente o titular ou vago o cargo, na cidade em que estiver), quando ele, conselho, tomar conhecimento,  de todo e qualquer fato que se configure como crime ou infração administrativa contra crianças e adolescentes, previstos no Código Penal ou no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Às vezes, o conselho tutelar, quando tem dificuldades para atender uma determinada criança ou adolescente ou para lhes aplicar uma medida especial de proteção, ele "faz um encaminhamento" (sic) ao Ministério Público, mais das vezes indevido, pois o faz fora dos casos previstos no Estatuto e fugindo do exercício de suas funções. O representante do Ministério Público não é um "padrinho", um "protetor" do conselho tutelar, a ser chamado em casos em que a atuação era para ser do conselho tutelar. Nem o Ministério Público é "órgão de execução ou de atendimento direto". Ele tem sua função constitucional e legal que precisa ser respeitada.

REGIME JURÍDICO DOS CONSELHEIROS TUTELARES

Natureza da função de conselheiro tutelar - Esta é a matéria mais controversa no Estatuto, a respeito dos conselhos tutelares e raiz de muitos problemas : a real natureza jurídica da função de conselheiro tutelar !
Pelo fato de ser o conselho tutelar um órgão público, como se argumentou atrás, os conselheiros tutelares são obviamente agentes públicos – a classificação mais ampla, onde se incluem os agentes públicos honorários (jurados), os funcionários públicos sob regime único, os empregados públicos, os titulares de cargos eletivos (vereadores etc.), os militares, os magistrados etc. etc. etc. Mas, isso é insuficiente: que tipo de agente público?
Na primeira versão do Estatuto, antes de sua alteração pela lei federal n.8.242/91, poder-se-ia falar que se tratava de cargo eletivo, assemelhado ao de vereador, por exemplo. E toda a disciplina do seu regime jurídico deveria ser buscada nas normas que disciplinam os cargos eletivos. A primeira versão falava em "processo eleitoral presidido pelo Juiz Eleitoral". Desse modo, se aplicaria literalmente o Código Eleitoral e nenhuma dúvida haveria. Salvo a que surgiu na época: se assim fora, nenhuma lei municipal poderia regular a matéria, por ser da competência exclusiva da União..
Todavia a reforma resolveu criar uma forma especial de provimento: livre nomeação pelo prefeito, após escolha de nomes e indicação pela comunidade.
Assim sendo, pode-se afirmar que se trata de uma função pública comissionada, vinculada a mandato certo popular, com regime jurídico especial, a ser estabelecido  na lei municipal que expressamente criar as funções de conselheiros tutelares (titulares e suplentes).

Natureza jurídica do processo de escolha dos conselheiros tutelares - A escolha dos conselheiros tutelares e sua investidura na função se fazem através de um processo/procedimento administrativ,o que se esgota na esfera do Poder Executivo municipal, ao qual estão vinculados administrativamente os conselhos dos direitos e os conselhos tutelares. Um procedimento que se completa com a nomeação e posse desses conselheiros tutelares,  pelo Chefe do Poder Executivo municipal[14].
Não um processo/procedimento judicial (eleitoral), como na redação original do Estatuto, posteriormente reformada.

Formas legais e legítimas de processos de escolha pela comunidade - O grande perigo, a macular a legalidade e legitimidade desse procedimento, tem sido na prática se manter a idéia de que se trata de um "processo eleitoral", de uma "eleição". Essa concepção errônea tem parido verdadeiros monstros, na prática.
Os conselheiros tutelares não exercem sua função como representantes da população, da sociedade como um todo - na linha da democracia indireta, como previsto na primeira parte do parágrafo único do artigo 1º da Constituição federal. Não são "eleitos", como prevê esse dispositivo citado.
Exercem-na, sim, como forma de  participação direta da população, nos termos da Constituição – segunda parte do dispositivo constitucional citado. Tão democrático quanto...! Supera-se, sem se negar, o restrito conceito da democracia representativa. A democracia direta no país se faz igualmente através da participação da sociedade por suas organizações representativas, por suas comunidades em concreto, no seio da sociedade, geral e difusa. [15]
A Constituição federal tem como cláusula pétrea que a democracia brasileira é representativa e participativa, concomitantemente, uma linha complementando a outra – isto é, uma não é prevalecente e mais importante que a outra.
Óbvio, que o processo de escolha com a participação de toda a sociedade é uma forma legal e legítima – possível e defensável! Não porque os conselheiros se tornam mais "representativos". A justificativa é outra, diversa daquela aplicável ao prefeito e vereador, que precisam ter legalidade/legitimidade de sua representação - como se viu atrás.  Mas por que a sociedade, como um todo, é o somatório das comunidades. Escolhidos pela sociedade significarão escolhidos pelas comunidades, num sentido amplo e numa interpretação mais ampliada do Estatuto.
A favor desse sistema de escolha direto pela população milita mais o fato de ter o CONANDA incluído, na sua Resolução nº 75[16], a recomendação de que se adote esse sistema. Isso vale como um parâmetro político respeitável e não como uma norma jurídica coercitiva. A partir desse indicativo do CONANDA, as leis municipais devem  preferenciar essa forma de escolha.
Mas, é bom que se faça um difícil exercício de tolerância e de superação de conceitos políticos tradicionais: a escolha de conselheiros tutelares,  através de parcelas da sociedade, das comunidades, de organizações sociais, também é  legítima. Escolhidos através das organizações comunitárias significam escolhidos pela sociedade, numa interpretação até mais literal e sistemática do Estatuto. Tanto, que assim se procede para a definição da participação direta da população no conselhos dos direitos – através das organizações representativas da sociedade. Por que, politicamente, em um conselho, essa forma é legítima e no outro (o tutelar) não o é...?!
Ainda mais, é de se lembrar que se tratando de estruturação, organização e funcionamento de um serviço público municipal, as leis municipais têm um campo de abrangência e prevalência maior, podendo ir, em certos pontos – em matéria organizacional e procedimental – a lateri (não, contra) Estatuto da Criança e do Adolescente[17].
Trata-se aqui de se assegurar o respeito ao princípio constitucional da autonomia municipal. O município hoje, pela Constituição federal é um ente federativo. Os seus artigos 29 e 30 isso asseguram, no tocante à organização do serviço público municipal.
Inconstitucional seria o Estatuto, se invadisse essa esfera do poder legisferante municipal. Aqui não prevalece o dispositivo constitucional[18] que estabelece que compete concorrentemente à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre proteção à criança e adolescente. Formalmente os dispositivos sobre estruturação e organização dos conselhos tutelares estão em uma lei de “proteção à infância e à juventude” (Estatuto citado), mas substancialmente são matéria de direito administrativo municipal, só podendo a União editar normas gerais. Tanto que exatamente por isso o Estatuto deixou que regular o procedimento para aplicação de medida de proteção pelo conselho tutelar, por se tratar de um procedimento administrativo municipal, a ser regulado por lei municipal. De maneira diversa, regulou o mesmo Estatuto, quanto ao procedimento para apuração do ato infracional praticado por adolescente e aplicação de medidas socioeducativas, que foi ali bastante esmiuçado[19]: trata-se aqui de procedimento processual[20], cuja competência legislativa é da União.
Legal também o é essa segunda forma: o que deve prevalecer na exegese dos textos do Estatuto deve ser a prevalência do "melhor interesse da criança e do adolescente"[21]. E se deveria levar em conta também a motivação histórica, a mens legislatoris[22]. O dispositivo do Estatuto, em questão, fala em "comunidade" e não em "população", "sociedade" etc. E basta se consultar dicionários para se constatar que “comunidade” significa segmento da sociedade, “parcela da população agrupada por interesses comuns, por razões geográficas” etc. No sentido da possibilidade legal de se adotar indiferentemente ambas as formas ("direta ou indireta") se pronunciam, em sua obra multicitada DONIZETI & CYRINO.
Todavia, necessário se torna evitar um equívoco que tem grassado em alguns municípios: incluírem-se autoridades públicas governamentais (prefeitos, secretários municipais, promotores de justiça, dirigentes de órgãos públicos, diretores de escolas etc.) no mal chamado “colégio eleitoral”. Enquanto cidadãos poderão participar do processo de escolha aberto, isto é, a escolha universal. Mas, nunca quando o processo de escolha se proceder através de representações comunitárias, pois eles são representantes do Poder Público – coisas que não se confundem na ótica do Estatuto. O Estatuto faz nítida distinção, em todo seu corpo, entre as esferas do “governamental” e do “não governamental”. 
A participação de qualquer representante de órgão governamental no processo de escolha de conselheiros tutelares, quando não se tratar do voto universal facultativo, o torna susceptível de anulação, requerida pelo Ministério Público, por qualquer entidade .
Em conclusão: nos termos do Estatuto, como acima se expôs, possível se torna o desenvolvimento do processo de escolha referido, através três formas de procedimentos mais comuns e consagradas pelo uso, hoje, no país:
§     Facultativamente, todas as pessoas indiscriminadamente (eleitoras ou não), acima de dezesseis anos e que residam no município, isso comprovando de qualquer maneira (exibição de documentos e elaboração de listas de votantes a posteriori);
§     Facultativamente, todas as pessoas que se inscreverem ou cadastrarem, previamente, na forma definida pela lei municipal (e regulado o procedimento de inscrição, pelo edital do conselho dos direitos), igualmente com os mesmos requisitos de idade e residência.
§     Somente os representantes da sociedade civil organizada, isto é, os representantes de comunidades (associações, entidades de atendimento, sindicatos, ministérios eclesiais e toda ou qualquer expressão da organização comunitária).

Papel dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente no processo de escolha -  A organização e presidência do processo de escolha de conselheiros tutelares ficaram como uma atividade especial dos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente de discutível definição de sua natureza jurídica e política. E isso ele faz, não tanto numa linha de gestão de meios[23], mas de controle do poder/atribuição do Poder Executivo municipal, de investir agentes públicos.
De ordinário, há certa dificuldade de se entender a natureza dessa intervenção dos conselhos dos direitos, que a primeira vista parece discrepar das suas demais atividades, dentro do espectro geral das atribuições desses colegiados municipais. Realmente,  tem-se reconhecido que – em função dos seus papéis jurídico-legal e político-institucional, como visto atrás -  os conselhos dos direitos não devem assumir nenhuma função de "execução de política pública", isto é, desenvolver atividades (através de um determinado serviço público) ou projetos (no bojo de um programa público): isso ficou bastante claro!
Assim, essa sua função de organização e presidência do processo de escolha dos conselheiros tutelares (que lhe foi atribuída posteriormente) precisa encontrar seu nicho jurídico e político-institucional. E aqui se propõe que seja no campo do controle das ações públicas[24], mesmo se reconhecendo que assim se fará de maneira bem pouco ortodoxa.
Assim sendo, aos conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente compete essa atípica atribuição, em caráter extraordinário e explicitado  no Estatuto: organizar e presidir o processo administrativo de escolha dos conselheiros tutelares, obedecendo à determinação do Estatuto.
O conselho dos direitos fica absolutamente adstrito às normas da lei municipal, não podendo - através do seu edital de convocação do processo de escolha – alterar nenhum dispositivo expresso da referida norma legal, como muitas vezes se está constando na prática, com sérios prejuízos para a realização do processo de escolha, que assim poderá ser anulado pela Justiça, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado.
Por exemplo, se a lei  municipal estabelecer um limite de idade, uma condição de escolaridade (nível médio ou fundamental), não pode o edital do conselho dos direitos isso alterar. Se a lei , em outro exemplo, não prever a apresentação de comprovação da aprovação em curso sobre o Estatuto, o edital não pode criar essa exigência.
DONIZETI & CYRINO (in "Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente") vão mais longe e explicitam: "(...) o Conselho dos Direitos só poderá dispor sobre  processo de escolha se lei municipal conceder-lhe autorização expressa".
Os referidos autores ensinam que (a) ou a lei municipal dispõe minudentemente sobre o processo de escolha dos conselheiros tutelares, não prevendo assim que os conselhos dos direitos tracem nenhuma norma complementar reguladora quando da convocação de cada processo de escolha (b) ou a mesma lei traz algumas normas gerais sobre a matéria, como mínimos legais e expressamente autoriza o conselhos dos direitos a regular a matéria, suplementarmente.

Histórico - Os conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente receberam do Estatuto (redação reformada) essa atribuição nova, exatamente para garantir ao máximo a autonomia funcional dos conselhos tutelares: quanto menos ingerência da prefeitura municipal, mais autônomo seria esse contencioso administrativo, que tem  entre suas atribuições  legais a de requisitar serviços públicos aos órgãos municipais.
Nasceu essa atribuição posteriormente à edição do Estatuto, em lei federal[25] que lhe alterou a redação original, motivada por decisão judicial.
Quando editado o Estatuto, previa ele que os conselheiros tutelares seriam eleitos para um mandato certo, em processo e eleitoral  presidido pelo juiz eleitoral da comarca, sob a fiscalização do representante do  Ministério Público. Mas, dizia também que lei municipal disporia a respeito desse "processo eleitoral" (sic).
Em São Paulo, em 1991,  com toda propriedade, questionou-se a constitucionalidade de tais dispositivos do Estatuto; apontando-se que nenhuma lei municipal poderia dispor sobre a matéria, tratando-se de processo eleitoral. Ter-se-ia que aplicar as disposições do Código Eleitoral. Assim sendo, a natureza das funções do conselheiro tutelar seria como a de um mandatário de cargo eletivo (prefeito, vereador etc.), com todas as decorrências disso:  candidatura partidária, voto universal obrigatório, inelegibilidade etc.
Em função disso, a matéria foi discutida amplamente, à época, no Fórum Nacional DCA[26], decidindo-se por se fazer um lobby junto à Presidência da República, com apoio do CBIA e UNICEF, para que se alterasse o Estatuto nesse ponto, evitando-se esse vício de inconstitucionalidade. Na época, elaborava-se o projeto de lei que criava o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA (1991) e aproveitou-se a oportunidade para se incluir dispositivo que alterava os artigos 132 e 136 do Estatuto, no tocante ao provimento da função de conselheiro tutelar.
Depois de grande discussão no seio das organizações sociais que militavam no movimento de defesa dos direitos da criança e do adolescente (DCA), com assessoramento de juristas que participaram da elaboração do Estatuto - decidiu-se que se abandonaria a idéia de processo eleitoral, mandato eletivo, aplicação do Código Eleitoral, condução do processo pela justiça eleitoral etc. etc..
E optou-se por uma forma de provimento atípica: um mandato certo, mas não fruto de um processo eleitoral judicial (federal). Seria um "processo para escolha (...), realizado sob responsabilidade do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente" e fiscalizado pelo Ministério Público[27]. Essa a intenção do legislador – importante elemento para exegese dos artigos reformados do Estatuto. Testemunham DONIZETI & CYRINO (obra citada): "A redação do dispositivo legal acima foi dada pela Lei federal 8.242 de 12.10.91 (DOU 16.12.91), que definitivamente afastou o questionamento de constitucionalidade da disposição anterior, que previa a 'eleição' dos conselheiros através de 'processo eleitoral', sob a presidência de juiz eleitoral".
Um procedimento de provimento de cargo ou função mais democrático e mais próximo do espírito desses conselhos – uma outra alternativa às duas outras formas possíveis, em termos constitucionais, isto é, no lugar da mera nomeação ad nutum para cargo comissionado ou após aprovação em concurso público[28].

A participação do representante do Ministério Público e do juiz, no processo de escolha - A imprescindível intervenção do Ministério Público, participando do processo administrativo de escolha (qualquer que seja a sua forma - "direta" ou "indireta"), tem que ser entendida como função fiscalizadora.
Ele não pode participar, deliberando sobre os procedimentos de organização e realização desse processo administrativo de escolha dos conselheiros tutelares. O Estatuto não lhe dá esse poder e nenhuma lei municipal pode ampliar seu papel nesse sentido, pois seria uma franca ingerência administrativa do parquet na gestão dos negócios públicos municipais. Já o papel fiscalizador, ele é típico do Ministério Público: da sua própria essência institucional. A ele a Constituição brasileira garantiu o papel de "órgão corregedor maior", fiscalizador, controlador – incontestado e independente. A efetividade do Estado Democrático de Direito depende disso.
Por isso, não pode ele se imiscuir na prática de atos administrativos, como se fora apenas um agente publico municipal, no caso. Seu papel é bem maior! Está ele atuando junto aos conselhos dos direitos, nesse caso específico, para fiscalizar os procedimentos -  promovendo a aplicação da lei, a defesa dos interesses individuais indisponíveis, os interesses difusos, coletivos e sociais e a defesa do regime democrático[29]. Lutando para que esses atos administrativos (escolha, nomeação e investidura de conselheiros tutelares) obedeçam aos princípios constitucionais da legalidade, economicidade, moralidade, impessoalidade e publicidade.
Assim, compete a ele impugnar atos da comissão competente (delegação do conselho municipal), durante o processo de escolha, perante a própria plenária do conselho. Ou ajuizar ações judiciais próprias para assegurar o respeito a direitos ameaçados ou violados (ao seu ver autonomamente), na forma da legislação processual civil.
Já a participação dos juízes, diretamente, no processo administrativo de escolha deve ser...  nenhuma! Ou aliás: maior, mas diversa! Os juizes de direito  intervirão, prestando a jurisdição, quando provocados pelas partes que tenham interesses contrariados e pelo Ministério Público – quando estes buscarem quem diga o Direito – via sentenças judiciais. Sua intervenção, nessa linha da prestação jurisdicional, garantirá o império da lei e o respeito aos direitos de quem possivelmente possa estar sendo lesado.
Esse o papel do Poder Judiciário, do qual não deveria se afastar nessa questão da escolha dos conselheiros tutelares. Sem prejulgamentos! Sem querer ser "administrador", mas sim verdadeiro magistrado – esse o espírito do Estatuto, quando extinguiu a figura do "juiz-administrador-legislador" do revogado Código de Menores[30]

Requisitos exigíveis dos candidatos à função de conselheiro tutelar - Quando do início de vigência do Estatuto, houve certa dúvida se as leis municipais poderiam inovar ou não de relação a essa norma geral nacional, que estabelecia, no seu artigo 133, apenas 03 requisitos para que alguém se habilitasse a conselheiro tutelar: (a) reconhecida idoneidade moral; (b) idade superior a 21 anos; (c) residir no município.
Esses são requisitos mínimos, que as leis municipais estão obrigadas a respeitar. Argumentava-se que o Estatuto não previa a ampliação desses requisitos, sendo tal listagem taxativa e não exemplificativa. Algumas decisões judiciais vieram a lume, de início, sob esse enfoque.
Com o passar dos tempos, passou a ganhar força uma linha de exegese diferente, dentro da linha que este presente ensaio sustentou atrás: o Estatuto dispõe sobre normas gerais de “proteção à infância e à juventude” (Constituição federal – art.24)
Essa lei federal em verdade é uma norma nacional de “proteção da infância e da juventude”, como prevista no art. 24, XV da Constituição federal. Compete  à união legislar, como fez com o Estatuto, sobre esta matéria concorrentemente com os estados federados, estando ela limitada à expedição de “normas gerais” (§1° – art.cit.). Por sua vez, normas legais estaduais poderão, em caráter “complementar” (§2° – art.cit.), legislar a respeito dos conselhos tutelares, respeitados os limites estabelecidos no art.30 da Constituição, no que diz respeito à competência dos municípios para legislarem. Leis, nacional e municipal, devem instituí-los, criá-los e regulá-los. A norma nacional de proteção os institui, dando-lhes atribuições e define parâmetros gerais para que leis municipais os criem, os estruturem, organizem, disponham sobre seu funcionamento e sobre o regime jurídico de seus membros.
Assim sendo, respeitados os requisitos do Estatuto, a lei municipal poderá criar novos requisitos compatíveis com a natureza da função de conselheiro tutelar: grau de escolaridade, aprovação em capacitações sobre "legislação de proteção à infância e juventude", experiência no trabalho de atenção integral à infância / adolescência, número de anos de residência no município etc.
A questão da idade mínima tem merecido uma discussão nova: após a vigência do novo Código Civil dever-se-á entender que revogada ficou a exigência do limite de idade fixado em 21 anos, devendo-se se entender que passa ele agora para 18 anos? Data venia, entendo que o Estatuto não atrelou expressamente o limite de idade para o exercício da função de conselheiro tutelar à maioridade civil. Não exige que o conselheiro tenha adquirido de alguma forma a maioridade civil - em outras palavras. Tanto que na vigência do antigo Código Civil nunca se defendeu a tese de que os maiores de 18 e menores de 21, emancipados de alguma forma, pudessem se candidatar a conselheiro tutelar. O juiz e tratadista Judá Jessé de Bragança SOARES já ensinava no passado: "Quanto à idade exigida, coincide com a maioridade civil, mas não se confunde com ela" (grifo nosso).
As leis criam limites de idade para o exercício de determinadas funções públicas, como para Presidente da República, Senadores etc. etc. E o Estatuto, na mesma linha, instituiu esse limite em 21 anos. Considerando-se de futuro politicamente conveniente, poder-se-á alterar (ou não!) o Estatuto, para reduzir o limite para 18 anos ou fixar em qualquer outro patamar (argumentando ad absurdum: 25? 35?). Mas enquanto essa providência legislativa, no âmbito do Congresso Nacional, não ocorrer, a idade mínima fica em 21 anos, salvo melhor juízo.
Outro ponto que merece um aclaramento diz respeito à diferença legal entre "residência" e "domicílio": exige o Estatuto que o candidato a conselheiro tenha residência no município, isto é, aquele município enquanto lugar onde ele tem, de fato, sua morada atual, com ou sem a intenção de aí permanecer (o domicílio exige residência com ânimo definitivo).

Investidura por mandato certo: não-prorrogação e recondução - A lei municipal deverá prever a investidura na função de conselheiro tutelar.  Ela se inicia com a proclamação de resultados do processo de escolha, pelo conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente, com a indicação e divulgação por edital dos escolhidos pela comunidade (titulares e suplentes). Desse ato caberá impugnação do ministério público ou recurso administrativo dos interessados, ambos perante o próprio conselho municipal dos direitos, que os apreciará e decidirá em instância administrativa. Desses atos do conselho municipal dos direitos cabe igualmente o apelo a remédio judicial (mandado de segurança, por ex.), tanto do ministério público, quanto dos interessados, dirigido ao juiz da infância e da juventude da comarca – lembrando-se sempre que o juiz não é instância derradeira, cabendo mais recursos de suas decisões para a segunda instância do Poder Judiciário (Tribunal de Justiça do Estado).
Após a edição desse ato complexo formal do conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente de proclamação de resultados e após também o julgamento dos recursos administrativos e judiciais (caso tenham sido interpostos), em se tratando de agentes públicos, ato de nomeação deverá ser expedido pelo prefeito municipal (ato vinculado aos resultados do processo de escolha, não podendo ele ignorar a ordem de escolha). Isso posto, a mesma autoridade dará posse aos escolhidos e nomeados, podendo delegar essa função, por exemplo, ao conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente.
Todavia, uma verdadeira aberração jurídica começa a se espalhar sorrateiramente pelo país, sob o manto de uma falsa legalidade e às vezes lamentavelmente com o respaldo do ministério público e da justiça da infância e da juventude: a chamada “prorrogação do mandato dos conselheiros tutelares”.
Ora, tratando-se de mandato certo, por 3 anos, concedido pela sociedade e homologado pelo chefe do poder executivo municipal, impossível juridicamente seria se prorrogar mandatos de agentes públicos.  Possível sim a recondução do conselheiro por mais um mandato: mas aí ele se submete a novo processo de escolha, se submete ao que mal chamaríamos de “re-eleição ", isto é, dependeria da vontade da comunidade.
Tem-se entendido de modo geral, que só uma reforma constitucional (disposição transitória) poderia prorrogar mandatos do presidente da república ou de outros agentes públicos investidos em mandato certo.
Findo o mandato do conselheiro tutelar, no dia imediato, não havendo novos conselheiros escolhidos pela comunidade e nomeados pelo prefeito, as funções protetivas do conselho tutelar passam a ser exercida provisoriamente pelo juiz da infância e da juventude, nos termos do art. 262 do Estatuto, aplicado extensivamente.
Nenhuma autoridade pública pode prorrogar, por via administrativa, o mandato de um conselheiro tutelar. Caso um juiz de direito o faça, em processo judicial, formalmente através de sentença, será o caso de obviamente se cumprir, recorrendo a prefeitura da decisão judicial, para o Tribunal de Justiça, por sua manifesta inconformidade com o ordenamento jurídico..
Dentro dessa linha da impossibilidade da prorrogação de mandato de conselheiros tutelares, em janeiro de 2003, o jornal A TARDE (17.01.2003), de Salvador, Bahia, noticia que um juiz da infância e da juventude da comarca de Salvador indeferiu um pedido de prorrogação de mandato e determinou que o novo procedimento de escolha ocorresse em cinco dias, sob pena de pagamento de multa diária, pelo poder público municipal.
Exatamente por isso tudo é que o CONANDA, através da resolução nº 75, de 22 de outubro de 2001, em seu artigo 10 determina o seguinte: “Em cumprimento ao que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, o mandato do conselheiro tutelar é de três anos, permitida uma recondução, sendo vedadas medidas de qualquer natureza que abrevie ou prorrogue esse período” . (grifei)
Por fim, é de se ressaltar que, quando o Estatuto prevê a "recondução", o faz nesta ótica. Absolutamente, não está  prevendo de forma tácita a prorrogação de mandato do conselheiro tutelar por mais um mandato. Mas, quer dizer que o conselheiro tutelar não pode continuar a se habilitar indefinidamente em procedimentos de escolha. Significa aquela norma do Estatuto que ele se tornará “inelegível", após ter permanecido no cargo por dois mandatos, escolhidos para ambos de maneira legítima, pela população, de alguma forma. É portanto "a comunidade que irá autorizar a recondução do membro do conselho, através de novo sufrágio" (DONIZETI & CYRINO – obra citada)
O CONANDA, em sua resolução nº 75 citada, também expressamente defende isso, como parâmetro para criação e funcionamento de um Conselho Tutelar (parágrafo único do art.10): “A recondução, permitida por uma única vez, consiste no direito do conselheiro tutelar de concorrer ao mandato subseqüente, em igualdade de condições com os demais pretendentes, submetendo-se ao mesmo processo de escolha pela sociedade, vedada qualquer outra forma de recondução” . (grifei)

Remunerações e vantagens - O Estatuto traz apenas uma norma programática, aventando a dupla possibilidade de se remunerar ou não o conselheiro tutelar, no exercício de suas funções. Uma vez que expressamente vedou a remuneração dos conselheiros dos direitos, ele contempla a questão dos conselheiros tutelares de maneira... "salomônica": "Lei municipal disporá (...) inclusive sobre sua eventual remuneração de seus membros" (art. 134).
De qualquer maneira, é imprescindível que a lei municipal declare expressamente que a função de conselheiro tutelar, naquele município, é remunerada. E que alguma lei municipal fixe o padrão de remuneração. Nunca o conselho dos direitos da criança e do adolescente! Lei municipal não poderá jamais delegar a esse colegiado a fixação da remuneração de conselheiro tutelar.
Por sua vez, as verbas para pagamento da remuneração dos conselheiros tutelares deverão ser provenientes do orçamento público municipal e previstas regularmente na lei própria, como despesas da secretaria municipal, à qual esteja vinculado administrativamente por lei os conselhos tutelares. O fundo municipal para os direitos da infância e adolescência não pode financiar o pagamento dessa remuneração, pois se trata de fundo público especial de investimento, devendo seus recursos ficar destinados a suas atividades-fim, isto é, ao financiamento de programas e projetos de proteção/promoção dos direitos da criança e do adolescente.

Exercício das funções, afastamentos e substituições - A matéria referente a férias, licenças, faltas, ausências, impedimentos e conseqüentes substituições deverá ser prevista na lei municipal – coisa que não ocorre geralmente nas leis municipais vigentes.

Regime correcional e disciplinar, destituição e perda da função -  Há necessidade que a lei municipal obrigatoriamente traga previsão das hipóteses específicas em que o conselheiro tutelar perderá a função e será destituído. E essa lei deverá mais disciplinar os procedimentos disciplinares para a declaração da perda da função e para a conseqüente destituição, estabelecendo quem é o responsável pela condução  desse procedimento apuratório (o conselho municipal dos direitos da criança e do adolescente...?) e pela aplicação da sanção administrativa de destituição da função (prefeito municipal...?).
Todavia, se a lei municipal for absolutamente omissa a esse respeito, o ministério público, as autoridades públicas municipais e qualquer interessado que se julgar prejudicado por ato do conselheiro tutelar, todos eles poderão ajuizar ação judicial própria, contra o conselheiro tutelar, visando a declaração da perda de função.

[1] GRAMSCI. Antonio - governo dos funcionários
[2] "Parâmetros para criação de Conselhos Tutelares" - Resolução n. 75 (reformada pois por nova Resolução-CONANDA) 
[3] Por exemplo: CEDCA-CEARÁ - "Guia Metodológico para criação dos Conselhos Tutelares e dos Direitos da Criança e do Adolescente". Tomo I – Coleção Ciranda dos Direitos.
[4] DONIZETI LIBERATI, Wilson & CYRINO, Público Caio B. 1997:  "Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente". São Paulo. Malheiros Editores.
[5] Constituição federal – artigos 227, §7º e 224, II.
[6] Cargos ou funções comissionadas, de livre nomeação e exoneração ad nutum
[7] Op. cit.
[8] Contextualizado, atrás, neste texto: 1.3.1. "Visões da Democracia e do Estado. Um novo-corporativismo social?"
[9] BOBBIO, Norberto – obra citada
[10] FALEIROS , Vicente de Paula. 1980:   "A Política Social do Estado Capitalista"
[11] Conferir atrás, neste texto: "Uma visão de Democracia e de Estado. Um novo corporativismo social?
[12] SOUZA FILHO, Rodrigo – obra citada.
[13] SOUZA FILHO, Rodrigo – obra citada.
[14] Procedimento de nomeação absurdo se tratasse de processo eleitoral, onde ocorreria a diplomação dos eleitos pelo Poder Judiciário.
[15] Conferir 1.4.1. atrás, neste texto: "Visões da Democracia e do Estado. Um novo corporativismo social?" Ali, se discutiu a questão do modelo dicotômico da democracia brasileira, mostrando-se a importância da participação das organizações corporativas sociais no Estado, como construtoras da Democracia
[16]Parâmetros para a Criação e Funcionamento dos Conselhos Tutelares no Brasil
[17] O principio da hierarquia das leis não é tão simplista e de aplicação esquemática, da linha do quem pode mais pode menos. Há que se respeitar o princípio da reserva de competência legislativa de cada esfera.
[18] Artigo 24 - CF
[19] Artigo 171 e ss. – Estatuto cit.
[20] Artigo 152- Estatuto cit. : aplicação subsidiária da legislação processual
[21] Artigo 6º do Estatuto cit.
[22] Ver registro do histórico do processo legislativo de reforma do Estatuto, aqui feito, no início deste item
[23] Exercício de atividade-meio, isto é, administrativo-burocrática
[24] "Controle" aqui no sentido amplo, não se confundindo com "fiscalização", como se faz algumas vezes.
[25] Lei federal 8.242 de 12 de outubro de 1991, que cria o CONANDA e dá outras providências.
[26] O Autor integrava o Secretariado Nacional dessa articulação de organizações não governamentais, representando a Rede Nacional dos Núcleos de Estudo e Pesquisa
[27] Artigo 139 citado
[28] É de se lembrar a limitação que a Constituição federal impõe para o provimento de qualquer cargo ou função pública. Tinha-se mais, como certo, que o conselheiro tutelar é um agente público, em que pese não ser um funcionário ou empregado público, no sentido estrito do termo (regime único ou CLT)
[29] Artigo 157 e 159 da Constituição federal
[30] Na prática do dia-a-dia lamentavelmente ainda se encontram alguns poucos magistrados que insistem em intervir administrativa e indevidamente na vida dos Conselhos Tutelares, como se fossem eles suas equipes multiprofissionais, inclusive procurando participar do processo de escolha dos conselheiros tutelares, por exemplo.